segunda-feira, 10 de setembro de 2007

"BELA DE MORRER": Do corpo fabricado pela moda



MARCAS DA CULTURA NA "FABRICAÇÃO"

DO CORPO

O antropólogo Viveiros de Castro, em seu estudo sobre os Yawalapitís, utiliza o termo `fabricação do corpo' para conceituar práticas pelas quais o indivíduo sofre uma ação direta da sociedade na constituição de sua porção fisiológica, a qual intervém diretamente sobre as substâncias que comunicam o corpo e o mundo, como fluidos corpóreos, alimentos, tabaco, óleos, tintas vegetais, entre outras coisas. (Sztutman, 1999)
Segundo Pierre Clastres, na obra A Sociedade contra o Estado (1986) as populações indígenas não necessitavam de aparelhos de coerção social, uma vez que a sociedade já é, desde cedo, inscrita no corpo das pessoas por meio de técnicas variadas, como tatuagens, escarificações e perfurações. É como se as leis e as instituições formais fossem ali substituídas por marcas impressas, com muito sofrimento, no corpo dos homens ¾ `a lembrança escrita pelo corpo é uma lembrança inesquecível.
No Brasil, estudos de Viveiros de Castro (1987) sobre as tribos indígenas como os Yawalapíti, constatam que as transformações do corpo e da posição social eram uma coisa só e não podiam ser dissociadas, sendo o físico humano fabricado, modelado pela cultura; assim, o corpo só ganhava existência mediante um processo de fabricação cultural, o que poderia ser verificado em ritos de passagem, como os da puberdade, doença, iniciação xamanística, eventos em que o corpo materializa os processos e etapas vivenciados pelo indivíduo e que são expostos ao grupo.
A "fabricação do corpo" na contemporaneidade é tão forte quando na era primitiva: a sociedade pós-moderna infringe sobre o corpo humano a marca de seu momento sócio-histórico atual, utilizando na `fabricação do corpo pós-moderno', todas as tecnologias disponíveis no mais alto grau de conhecimento humano ¾ laser como peeling, para cirurgia plástica e implante de cabelos; químicas e farmacologia para emagrecer, aumentar, endurecer e estreitar as formas; materiais sintéticos como silicone e metais como ouro, platina e cobre para aumentar os seios, segurar a face e esticar os ossos ¾ tudo para tornar o corpo o ícone do momento presente: o belo e o ideal de acordo com sua cultura.
Desde os primórdios da existência humana, o corpo foi fabricado pela cultura. Os padrões estéticos consensualmente adotados pela cultura sempre dizem respeito à cosmologia vivida num dado período sócio-histórico. Parte de nosso sonho de consumo em relação à moda, por exemplo, é, assim como em culturas primitivas, sofrer a transformação, construção estética do corpo para integrar-nos ao padrão de imagem vigente.
O significado do adornar, ornamentar, `fabricar' o corpo, constitui uma prática de comunicação e representação de valores sociais, já que este corpo só ganha existência por meio da fabricação social, isto é, da atuação do social sobre o corpo, que lhe acrescenta um valor estético imbuído de determinantes simbólicas da cosmologia local.
A atuação do social sobre o corpo e a forma de vê-lo, de conceituá-lo é a grande marca da cultura sobre a materialidade humana. Podemos `ler' a cosmologia de um povo e sua época pela caracterização dos corpos, pelas formas que esses corpos são expostos ou escondidos (a apresentação ou omissão de sua imagem), por quais características humanas nele são evidenciadas ou veladas ¾ a sexualidade ou a negação desta, a gula e a extravagância ou a resignação e a fome, a arte sobre a pele ou a pele como pecado.
Vivenciar as significações sociais, determinadas em muito por crenças e rituais esotéricos por meio da fabricação, transformação e metamorfose do corpo torna-se uma maneira de tornar assimilável aos sentidos, sobretudo acrescentando-lhe um valor estético, aquilo que não é palpável. Marcar, ornamentar o corpo torna-se, a partir deste ponto de vista, uma ação ritual que representa, imbuída já de um valor estético, uma prática de transcendência por um lado e de integração por outro.
O senso estético, como comenta o antropólogo Franz Boas, no livro El Arte Primitivo, (1947) se constitui nas sociedades primitivas pelos movimentos ritmados do corpo ou de objetos; as formas que apelam para o olhar podem ser designadas como obras de arte quando provocam sensações agradáveis. A ornamentação do corpo, acrescida de valor estético, constitui uma das primeiras manifestações da arte primitiva. Esta prática, também forma de arte e processo ritual, constitui, já na era primitiva, enquanto arte representativa sobre o corpo, um meio de identificação, comunicação visual e representação de valores e inscrições sociais compartilhadas pelos povos.
No decurso da história da humanidade, os estatutos do corpo têm se alterado conforme as mudanças socioculturais ocorrem no interior de grupos, etnias e das sociedades como um todo. Nas sociedades primitivas, o corpo humano era instrumento do trabalho de subsistência, alheio ao sujeito, à subjetividade, inconsciente da individualidade. Sua função era a de objeto do todo social. Segundo o antropólogo Viveiros de Castro, “a exemplo do complexo de reclusão pubertária do Alto Xingu, em que os jovens têm o corpo literalmente fabricado, imaginado por meio de remédios, de infusões e de certas técnicas como a escarificação... fica claro que, em suma, não havia distinção entre o corporal e o social: o corporal era social e o social era corporal.” (SEXTA-FEIRA, 1999:114)
Tal é a fundamentação do corpo como “essência” da humanidade entre os povos primitivos ao passo que, enquanto para o pensamento ocidental, o ato de conhecer implica na busca pela objetividade, pelo distanciar-se da subjetividade do objeto, reduzindo a intencionalidade do mesmo, o dasanimizando; para os “cientistas primitivos”, ou seja, para os xamãs, conhecer alguma coisa é atribuir-lhe o máximo de intencionalidade, é buscar a subjetividade como forma de conhecimento. Lévi-Strauss dizia que esse ideal de subjetividade que constituía o xamanismo está confinado na nossa civilização no que ele chamava de parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento domesticado: a arte. O pensamento selvagem foi confinado oficialmente ao domínio da arte; fora dali, seria clandestino ou alternativo. (SEXTA-FEIRA, 1999:125)
Em outras palavras: é ter capacidade de ocupar um corpo outro repleto de afecções.
Pelo pensamento ameríndio, espécies animais e vegetais possuem, por trás de seus disfarces corpóreos, um espírito humano. A corporalidade aparece como instância de produção de significações sociais. O corpo torna-se então, como ressalta Merleau-Ponty, (1985:212) um conjunto de significações vividas.
O sentido estético na ornamentação do corpo entre os povos primitivos, numa acepção artística em que a representação simbólica se coaduna à estimulação de agradar aos sentidos; já denota a estreita relação entre arte e mito (religião), onde o caráter esotérico define, assim como também é definido por inscrições sociais; e o corpo, como instrumento da continuidade entre natureza e cultura torna-se um ponto fundamental que interliga as diversas instâncias (sociais, religiosas, políticas, culturais) da vida primitiva.
CORPO E CULTURA EM DIFERENTES ÉPOCAS
Na era greco-romana acreditava-se na extensão corpo/espírito, em que estes se complementavam na busca pela harmonia - “mente sã, corpo são” - o que caracterizava a cultura helenística. O nu era sagrado e a relação saúde-beleza-juventude constituía praticamente uma liturgia. Corpo e espírito eram manifestações de uma mesma realidade e, mesmo a medicina, oriunda do século IV a C., estava impregnada das idéias de harmonia, medida e proporção.
Com o surgimento do Cristianismo, teve início a separação irreconciliável entre corpo e alma, natureza e espírito, sensibilidade e intelecto, razão e paixão. Ao contrário da religião entre os povos primitivos, em que os deuses e elementos superiores encontravam-se na natureza, no que era palpável, ao mesmo nível do homem, o cristianismo tornou a dimensão espiritual algo inatingível, impossível de ser captada pela dimensão física, material, de forma a promover o início da dicotomia entre corpo-espírito.
Já no período anterior ao Renascimento, nas civilizações ocidentais, a dicotomia entre corpo e espírito, fundamentada em dogmas religiosos, impunha a negação do corpo em favor da elevação do espírito. Com a era do Renascimento, as atenções foram centradas no homem, não mais em Deus ou na Igreja. Segundo Hoffmann, (1998), nunca arte e ciência andaram tão próximas quanto nesta era, a ponto de se questionar se Da Vinci (1452-1519) dissecava cadáveres humanos para melhor desenhar ou para melhor conhecer o corpo biológico.
Descartes (1596-1650), fundamentou seu discurso filosófico num dualismo corpo/espírito, em que o corpo era reduzido à condição de máquina, considerado como uma exterioridade a ser controlada, um instrumento a ser operado pela razão, cujo propósito era resguardar a Igreja e a ciência moderna que então despontava (Hoffmann, 1998). Mesmo as funções mais próximas do pensamento, como sonhos, memória, paixões, eram explicadas dentro de uma visão mecanicista. O espírito ficava assim resguardado como convinha à Igreja, e o corpo, sendo matéria, podia ser reduzido, estudado, compreendido. Segundo Hoffmannn, o mecanismo de origem cartesiana deu origem ao moderno reducionismo, do qual resultou a visão fragmentada do corpo humano.
A modernidade do século XIX, por sua vez, com sua ruptura em relação à tradição e corrida pelo progresso e pelo futuro, converteu o corpo humano em máquina operada pelo capitalismo em ascensão: ao contrário da era primitiva em que o trabalho, na forma de subsistência era realizado para a manutenção das necessidades fisiológicas do corpo, na modernidade, o trabalho como forma de acumulação torna o corpo escravo da dinâmica do capital. O corpo exaure suas forças pela acumulação em lugar da subsistência; ironicamente, o resultado econômico do trabalho não provê a subsistência necessária para a manutenção deste corpo. Associada ao corpo/máquina fabricado pelo capitalismo moderno, a moda emerge caracterizando e definindo os atores sociais pela composição estética sobre seus corpos. A era vitoriana vela o corpo com cores escuras que cobrem quase toda a sua extensão, como se a mínima exposição de pele pudesse libertar a luxúria do homem/animal liberto das rédeas seguras pelas convenções sociais.
Segundo Richard Sennet (1982), com a emergência da problemática do “eu” no século XIX, (a exemplo das descobertas de Freud), em decorrência da divisão da vida urbana em esfera pública/esfera privada, o estatuto do corpo assume novas dimensões, tornando-se instrumento da busca narcisista por auto-satisfação, personalização e individualização crescente. O corpo torna-se instrumento do sexo, do prazer, da auto-afirmação e confunde-se com o que significa o indivíduo em si, gerando uma despersonalização dos conteúdos internos deste e a concepção de que as “pessoas são seus corpos”. Todavia, diferentemente do estatuto social atribuído ao corpo na era primitiva, onde ele é uma continuidade da relação natureza-sociedade e a corporalidade é instrumento da vida prática que se desenvolve de uma forma comunitária onde o valor do social se sobrepõe ao indivíduo isolado; no capitalismo industrial o corpo assume atributos de instrumento do narcisismo, do individualismo, de um “eu” emergente isolado afetivamente do todo social.
Essa mistificação em torno da imagem como reveladora da personalidade, cria um novo estatuto do corpo, a crença na subjetividade revelada na corporalidade. Ela torna-se evidente neste período, por volta do fim do século, com o início de práticas como a frenologia - a leitura da personalidade a partir da forma da cabeça - e das mensurações de Bertillon em criminologia (Sennett), pelas quais os psicólogos tentavam identificar futuros criminosos por meio de características cranianas, além de outros traços físicos.
Pós-Modernidade. O que para muitos é apenas um neologismo, aqui é empregado para nos remeter ao momento sócio-histórico atual: a sociedade complexa que se forma e se transforma após a modernidade. É nesse momento, em associação diametricamente oposta (ou não) com o primitivismo que o corpo assume, de forma mais preponderante, o estatuto de representação simbólica de uma cultura e sua época.
Na era que aqui categorizamos como pós-modernidade, o corpo assume de forma mais explícita e contínua o estatuto de representação de subjetividades, de individualidade, de personalidade, de exteriorização de conteúdos do sujeito - que foram reverenciadas no século XIX e abolidas no início do século XX - ou até mesmo da construção de “simulacros de sujeito”. O corpo, que na era primitiva servira tanto como aparelho social, ao todo coletivo, torna-se instrumento, objeto personalizado do indivíduo, “palco” para a dramatização do self.
Já no início do século XXI a ornamentação do corpo dá-se pela forma como a pessoa “constrói” este corpo por meio de dietas, plásticas, bodybuilding entre outros exercícios específicos para a forma que se deseja adquirir, tratamentos de pele de última geração, o cuidado com os cabelos e o recurso das tinturas, permanentes; entre outras tantas técnicas utilizadas em prol da beleza. A estrutura cultural de grupos urbanos, a exemplo dos clãs primitivos, lança mão da estética do corpo como dramatização de si mesma. É na cultura de rua, nos grupos de estilo urbanos que vemos, com maior evidência, o processo de personificação e ritualização via composição indumentária e comportamento social. A ornamentação do corpo na pós-modernidade, a exemplo dos grupos de estilo, com seu aspecto teatral e iconográfico, possui o mesmo significado de representação do universo simbólico e muitas vezes imaginário, onírico dos totens criados por sociedades primitivas.
O corpo enquanto forma, numa referência ao “formismo” de que nos fala Maffesoli (1996:127) no livro No fundo das aparências, nos mostra que a forma (ou aparência) é formadora e, que a aparência é, ao mesmo tempo, parte integrante de um exemplo dado e meio de compreender este conjunto, o todo social. A aparência nos mostra o que é aleatório e ao mesmo tempo dá coerência à totalidade. É a relação do homem com o meio, em sua forma simbólica que pode ser lida na aparência.
Do body piercing e cirurgias plásticas da artista Orlan, que recria seu corpo como obra de arte pelo uso do bisturi, até o uso do silicone nos seios, estes são grandes signos do nosso tempo em pequenos detalhes do nosso corpo que recriam sua imagem e de muitos tempos dentro do mesmo momento sócio-histórico que nos mostram o que somos pela cultura que nos compreende ¾ a nós e ao Outro, mesmo quando o eu e o Outro trocam de sujeito.
Até o século XIX o corpo ornamentado por signos da cultura servia à confirmação de hierarquias sociais. Na era atual, o corpo torna-se território para onde são deslocadas e realojadas relações, instâncias da vida cotidiana e manifestações de discursos artísticos e científicos. É nesse novo território denominado corpo que muito das representações, rituais e instâncias míticas do ethos urbano contemporâneo alocam-se e manifestam-se.
O conhecimento necessário sobre o corpo e suas dimensões (biológicas, políticas, artísticas) só pode ser atingido se considerarmos o corpo contemporâneo e a representação imagética de seu significado como um produto da cultura contemporânea. Em tempos de pesquisa genética avançada, de bio-robótica e de neurociência cognitiva, muitos são os que se voltam para o determinismo biológico, para o neo-positivismo, entre tantas concepções que visam elucidar razões sobre nossos corpos e a vida social, os relacionamentos, as paixões políticas e até mesmo a moda que os adorna. Contudo, lembrando o antropólogo Roque Laraia, no livro Cultura, um conceito antropológico (2002), a cultura, na grande rede de significados que tece na história da humanidade, torna-se algo como uma `segunda natureza', em sua relação de continuidade entre natureza e sociedade.
A cultura é a grande teia que nos envolve em universos simbólicos tão representativos que, para muitos, parecem fatos naturais. Portanto, as relações entre o corpo (sua imagem) e a cultura contemporânea, mais precisamente, a marca da cultura sobre o corpo em sua porção estética e ideológica, é um campo de estudo necessário para a ampliação do conhecimento, num tema que, apesar de citado constantemente, é menos pesquisado nas ciências humanas do que deveria, deixando margem para uma série de equívocos, `achismos', preconceitos e dúvidas.

MODA E PÓS-MODERNIDADE: CORPO E SIGNIFICADO
“A modernidade esforçou-se pelo esquecimento, pela recusa do passado. A pós-modernidade por sua vez, procede antes por acumulação, por aglomeração”.(MAFESOLLI, 1998:66)
O título do álbum lançado pelo músico/poeta urbano Arnaldo Antunes, Tudo ao Mesmo Tempo Agora, cabe aqui como a representação do contexto sociocultural em que vivemos na contemporaneidade. Podemos dizer que este contexto está representado em estética e conteúdo na moda a partir dos anos 90, em sua dimensão sociocultural, histórica e artística.
“Tudo ao mesmo tempo agora” representa a condição, situação em que as estruturas socioculturais engendram seus processos e que as manifestações artísticas, comportamentais, coletivas e individuais ocorrem nas sociedades complexas, a exemplo do universo da moda. Tal condição pode ser definida como pós-modernidade, condição contemporânea estabelecida após a modernidade industrial, o que, conforme Antony Giddens (1991), significa que a trajetória do desenvolvimento social nos tira das instituições da modernidade rumo a um novo e diferente tipo de ordem social.
Giddens analisa o conceito de pós-modernidade como um período de disparidade com o passado, significando que a certeza se dissolve, desde que todos os fundamentos preexistentes da epistemologia se revelam sem credibilidade, que a história é destituída de teleologia e, consequentemente, nenhuma noção de progresso pode ser plausivelmente defendida como fora na modernidade.
Também categorizada como modernidade tardia, a pós-modernidade não deve ser confundida com pós-modernismo ¾ movimento de vanguardas artísticas e literárias ¾ mas implica modos de vida, cultura e desdobramentos político/sociais vividos na contemporaneidade. A pós-modernidade implica descontinuidade, desarticulação de paradigmas e dissolução de identidades, como conceitua Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade:
“Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade (...) Esta perda de um `sentido de si'estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento ¾ descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos ¾ constitui uma crise de indentidade”. (Hall, 2001: 9)
Independentemente da nomenclatura adotada para se definir a situação contemporânea, seja pós-modernidade, modernidade-mundo, modernidade tardia ou até mesmo o jargão globalização, a situação que se apresenta em diversas instâncias da vida urbana, social, política, cultural, histórica existe e, independentemente de nossa aceitação da terminologia, a pós-modernidade afeta drasticamente todas as esferas socioculturais que interagem na constituição da contemporaneidade.
Na modernidade, vimos que os conceitos de progresso, de futuro e de recusa ao passado eram preponderantes na formação de estruturas sociais e na cultura. Na pós-modernidade, elementos de tempos históricos, culturas e valores diferentes se mesclam e organizam (ou desorganizam) como novas formas de se conceber e viver o presente. O passado é revisitado e a temporalidade, fluida. Pós-moderno = após a modernidade.
A moda na pós-modernidade, aqui abordada como signo utilitário, apresentada como uma bricolagem estético/temática onde signos, significados e ícones compõem uma ação comunicativa e um novo corpus artístico; é analisada segundo o conjunto de múltiplas determinações que a constituem como um fenômeno sociocultural urbano.
Neste fenômeno observamos referenciais estéticos que mesclando “tudo ao mesmo tempo agora”, tornam a expressão de moda um dos mais representativos sinais do deslocamento dos referenciais, hierarquias e valores sociais que promovem a ambivalência, ambigüidade que prosperam na pós-modernidade.
Simulacros, desarticulações e rearticulações de significados, inversão de valores, desestruturação de ideologias, desterritorialização de elementos simbólicos, compõem a complexidade da vida metropolitana pós-moderna, que pode ser lida na linguagem estética e dinâmica de produção/reprodução do universo simbólico urbano traduzida na expressão de moda tal qual esta se apresenta. Conforme Eco:
“As poéticas contemporâneas, ao propor estruturas artísticas que exigem do fruidor um empenho autônomo especial, freqüentemente uma reconstrução, sempre variável, do material proposto, refletem uma tendência geral de nossa cultura em direção àqueles processos em que, ao invés de uma sequência unívoca e necessária de eventos, se estabelece como que um campo de possibilidades, uma “ambigüidade” de situação, capaz de estimular escolhas operativas ou interpretativas sempre diferentes. (ECO, 1970 :93)
Se a sociedade contemporânea se apresenta como uma polifonia de discursos, como discursos abertos, típicos da arte, e da arte de vanguarda em particular, cuja ambigüidade tende a não nos definir a realidade de modo unívoco, definitivo, já confeccionado, mas nos coloca numa condição de estranhamento em função de sua fluidez, a moda reflete a imersão na totalidade destes discursos, no que Mafesolli chama de razão interna.
Na era que aqui categorizamos como pós-modernidade, a moda assume de forma mais explícita e contínua, o estatuto de representação de aspectos da experiência humana. Ela torna-se instrumento, personalização do indivíduo, “palco” para a dramatização do self.
A moda invade outras searas e se estende, para além do vestir o corpo, no corpo em si, na forma como o adepto da moda o constrói para usá-la. Se outrora o nível social de uma pessoa podia ser observado pela forma como ela compõe seu traje, no fim do século XX este nível pode ser avaliado pela forma como a pessoa “constrói” seu corpo, através de dietas, plásticas, bodybuilding entre outros exercícios específicos para a forma que se deseja adquirir, tratamentos de pele de última geração, o cuidado com os cabelos e o recurso das tinturas, permanentes; entre outras tantas técnicas utilizadas em prol da beleza. O corpo hoje é a moda que antecede a roupa.
Até o século XIX, como pontua Lipovetsky, a moda vigente servia à confirmação de hierarquias sociais. Na era atual, a moda torna-se território para onde são deslocadas e realojadas relações, instâncias da vida cotidiana e manifestações de discursos artísticos e científicos. É nesse fluido território denominado moda, que muito das representações, rituais e instâncias míticas do ethos urbano contemporâneo alocam-se e manifestam-se.
Contudo, a noção de moda enquanto domínio do indivíduo, espaço de exercício da individualidade, de liberdade, como afirma Lipovetsky, onde a autonomia do sujeito prevalece sobre a disciplina e controle determinados pelo social, deve ser analisada com cautela, pois, se assim fosse, a prática hedonista do consumo, seria o verdadeiro `nirvana', exatamente como no discurso proclamado pelos homens de marketing, que nos “oferecem” através dos prazeres do consumo, a liberdade, a autonomia, a satisfação, a auto-estima, o reencontro do indivíduo consigo mesmo.

DO CORPO FABRICADO PELA MODA
Existem vários estatutos da ornamentação do corpo em períodos históricos e culturas diferentes. Mas, além de instância de significações vividas, habitus, objeto de representação de subjetividades, de crenças, de culturas vivenciadas, o corpo metamorfoseado, fabricado, vestido, estilizado, malhado, sarado, operado é, sobretudo nos dias de hoje produzido em função de um ideal de “beleza” tornado vigente pela moda e por significações políticas (como padrões étnicos) que ela agrega.
Beleza e moda não são um par tão constante quanto moda e status, razão pela qual as discussões acerca de padrões de beleza na moda são assombradas pelo gosto duvidoso, o grotesco e o sublime. Para Etcoff (1999), na moda a beleza é uma lousa em branco.
A moda tem o poder de conceber a beleza sob a forma de um paradoxo: por um lado, a imagem do desejo, da sedução, da atração, do sexo e, por outro lado, instrumento de poder de elites, das classes superiores que a utilizam como signo de distinção, nem sempre esteticamente aprazível, mas sempre soberba, audaciosa, arrogante. Aqui a estética aprazível cede lugar ao princípio da diferença, da definição de limites operacionalizados por padrões inexoravelmente definidos como a estética do belo.
Ancoramos esta parte de nossa investigação em pesquisas biológicas/evolucionistas, na tentativa de elucidar motivações outras, além das culturais, que impelem ao desejo do belo, do status e, principalmente, da moda. Para os biólogos, o que motiva a busca pela beleza são nossos genes pressionando para serem transmitidos e tornando seu habitat o mais convidativo possível. A beleza se constitui, por esse ponto de vista, como decorrente da relação meio ambiente - biologia - cultura, fatores que “amoldaram” nossas predileções de aparência física durante a evolução humana.
Sob a visão da psicóloga evolucionista Nancy Etcoff, somos produto da evolução e não podemos mudar nossos instintos ou predileções tão rapidamente quanto atualizamos nossa informação. As mudanças socioculturais não mudaram o instinto, ainda que vivamos num mundo orientado pelo pensamento.
Nossa mente, reações a estímulos externos e motivações, foi desenvolvida em um mundo que era tribal e não global, onde as condições de sobrevivência e reprodução eram outras, a natalidade não era controlada, o número médio de anos de vida era 30 - 40, bebês e crianças morriam freqüentemente de doenças infecciosas e parasitárias antes de chegar à maturidade.
O sistema biológico que automaticamente desenvolvemos, sondava a viabilidade sexual, ele era adaptativo, isto é, reações e motivações, como desejo e atratividade são resultado dos nossos genes nos preparando para condições externas de sobrevivência. Hoje nos encontramos entre sentimentos furtivos por estranhos e reações sexuais a rostos e corpos, que na verdade não controlamos pelo pensamento. Chamem de química, coisa de pele, ou simplesmente atração, tais ocorrências são resultado da evolução.
“O corpo de nossos ancestrais resolveu o problema adaptativo de como sinalizar a sua adequação como parceiros potenciais. Esses sinais biológicos são diferentes dos gestos de galanteio e flerte com que costumamos sinalizar interesse real nas atividades que a beleza de nosso corpo provoca. Os sinais biológicos são leituras fáceis, os sinais psicológicos são mais complexos. Mas se nossos ancestrais não tivessem radar para corpos saudáveis e férteis, teríamos parado de nos desenvolver há muito tempo... Belos traços humanos são uma linguagem consagrada ao problema adaptativo de como sinalizar visualmente seu próprio valor como parceiro potencial e como avaliar o valor de outros por meio de seu visual... No fim do século XX, sexo e reprodução seguiram, em parte, caminhos separados.” (ETCOFF, 1999: 84-85)
Podemos observar, portanto, que a beleza corpórea, enquanto fonte de informação genética, desencadeou todo o processo de desejos, atração, sexualidade para a sobrevivência da espécie. Após milênios de evolução ainda carregamos as mesmas reações a ela. Todavia, foi o desenvolvimento da cultura entre os povos que lhe delegou os estatutos que lhe atribuímos hoje em dia. Um fenômeno biológico de reações a estímulos foi amoldado por estruturas culturais.
Segundo Etcoff, a beleza é parte universal da experiência humana e provoca prazer, fixa a atenção e impele ações que ajudam a assegurar a sobre vivência dos genes.Pela lógica da evolução, a valorização da aparência torna-se um guia do que é bom e do que é mal para nós. Em épocas remotas da humanidade, beleza era bondade, o que era belo era bom. A feiúra era sinal do ruim, do louco, do perigoso. Deformidades, feiúra e doenças eram vistas como estigmas marcados no corpo por um deus colérico: ¾ sempre tratamos a aparência física como fonte de informação.(Etcoff, 1999)
Devemos pensar que nem sempre tivemos sabonete, shampoo, barbeadores, cremes para acne e alergias, ou, até mesmo, banhos diários. Durante a maior parte da história da humanidade, o cidadão comum, a exemplo da idade média no Ocidente, possuía um padrão de higiene muito distinto do atual, eram poucos os que mantinham grande parte dos dentes, que tinham a pele lisa, cabelos limpos e sedosos.
Belos eram os não acometidos por doenças infecciosas, parasitárias ou erupções de pele em decorrência dos padrões de higiene da época. A aparência era uma forma explícita de averiguar se um indivíduo era saudável, consequentemente, um bom parceiro em potencial.
A beleza sempre foi precursora da reprodução sexual, somos avaliados como material genético para parceiros a vida toda, queiramos ou não. Portanto, na antiguidade, buscar um parceiro belo significava assegurar genes saudáveis para a reprodução.
Podemos dizer que a beleza constitui consequentemente, também um fator fundamental da relação natureza - sociedade. Buscar o belo tornou-se um fenômeno cultural, vigente entre os mais diversos povos, que concebem a beleza segundo seus próprios padrões, derivados estes da convergência entre estrutura biológica, agentes do meio ambiente e modus vivendi.
Segundo pesquisadores da neurociência cognitiva, como Etcoff e Ekman, o conjunto aparência/sexo/reprodução, motiva a busca pela beleza. Assegurar a transmissão de genes saudáveis poderia solucionar o fator biológico, entretanto tornava-se necessário assegurar também a sobrevivência. Não bastava a uma mulher dispor de um parceiro com carga genética privilegiada, era preciso assegurar a sobrevivência da prole, razão pela qual a capacidade de prover mãe e filho converteu-se em fator fundamental na escolha de parceiros às mulheres, que buscam não apenas um provedor de genes, mas também um provedor de subsistência. No decorrer da evolução, no caso dos homens, a beleza física sempre foi preponderante para a escolha de parceiras.
As mulheres buscam um companheiro para criar o bebê, sendo mais lentas, avaliativas e sensatas em suas escolhas. Este homem escolhido cuidará da prole, a defenderá contra inimigos externos, por essa razão, os homens ainda são avaliados pelos seus rendimentos e status social, assim como poder e hierarquia sobre outros homens, tanto quanto as mulheres ainda são avaliadas pela sua beleza.
Homens procuram pela beleza em mulheres, pois são indícios de que sua saúde lhe permitirá conduzir a gravidez e de que ela será sexualmente receptiva a esse homem. Mulheres abaixo do peso normal não ovulam, portanto não engravidam - primeiro paradoxo da moda: Se a condição fértil demonstrada pela aparência, por formas físicas arrendondadas nos quadris se converteu em determinante para atribuir beleza às mulheres, o que significa que, na natureza humana o macho sente-se motivado, atraído, “encantado” pela beleza destas formas exuberantes, pois indicam que a mulher está preparada para conceber, a moda elege como belo o contrário, isto é, quadris retos, nádegas achatadas, e a aparência de androginia, que na natureza poderia ser repulsiva ao homem.
Percebemos que, tal qual as sociedades primitivas tribais, com o sistema da moda o corpo é “fabricado, produzido” pelo social, tornando-se matéria prima esculpida pela cultura, obra da arte contemporânea onde a realidade a marca por seus estigmas.
A atual “cultura do corpo” (cujo sentido ambíguo poderia sugerir cultuar o corpo, “cultiva-lo, produzindo-o”, ou mesmo cosmologia que remete ao universo simbólico atribuído ao corpo), retroalimentada pelo universo da moda, suscita todo um arsenal de práticas, técnicas, tecnologia, mercado, atitudes que podem ser analisados segundo a ótica Weberiana sobre o tipo ideal, isto é, um modelo consensualmente aceito é imposto e dita um padrão incontestável a ser seguido.
Se na década de 50/60, era da eclosão das musas de Hollywood, de Marilyn Monroe, considerada a mulher mais sexy do século XX, da consagração das louras, da sensualidade das roupas com cavas, fendas e decotes ousados, o “corpo ideal”, manequim 42, possuía a cintura de 72/74 centímetros e quadril 98, na virada de século XXI, o “tipo ideal”, antes atriz hollywoodiana, hoje top model, possui manequim 36, com cintura de 50/60 centímetros e quadril 80.
Em plena emergência do “wellness”, isto é, a qualidade de vida como nova ordem, médicos, psicólogos, psiquiatras e mães de adolescentes modernas, travam uma árdua batalha contra o padrão top model, que acarreta distúrbios físicos e psicológicos como anorexia e bulimia.
Estima-se que nos Estados Unidos, uma em cada trinta universitárias possui um distúrbio de alimentação, causado, principalmente, pela imposição de um modelo de corpo ideal feminino.
Transformar, reformar, produzir, fabricar este corpo, sacrificando saúde, humor, condição econômica, auto-estima, realmente torna-se um “mal social”, da cultura de consumo, da mídia, da modernidade... Será?
Não questionamos aqui os malefícios que a imposição deste modelo de aparência física causa, principalmente às mulheres jovens. Em meio a toda a busca de conscientização feminina e luta contra um modelo politicamente incorreto, da tentativa de libertar a condição feminina da submissão à condição de “fêmea atraente” destituída de ego, mulher objeto, escrava da imagem, questionamos sim, se este fenômeno que nos parece “moderno”, não é simplesmente um padrão que se reproduz durante quase toda a história da humanidade.
Desde os primórdios da raça humana, o corpo foi fabricado pela cultura. Modelos de beleza física induziam a alongar pescoços com aros de metal (como na África), furar e alongar lábios com madeira e metal (entre tribos indígenas brasileiras), trucidar e deformar pés em sapatos que mais pareciam instrumentos de tortura (como entre as gueixas no Japão), queimar e marcar a pele com ferro quente (como na prática do branding), além das abomináveis práticas africanas de extração do clítoris feminino (na África), ou da castração de garotos, para que suas vozes não se tornassem adultas (os castrati da Idade Média na Itália).
Sem defender tais práticas, pois nos solidarizamos com as vítimas afetadas pela dor, pelo sofrimento e por diversos distúrbios causados pela imposição de modelos de corpo, questionamos se, o que ocorre na ditadura das top models, do mundo da moda e da mídia, fenômeno caracterizado como moderno, atual, não será a forma contemporânea da sociedade imprimir visceralmente a cultura sobre o corpo na atualidade.
Até o século passado, o padrão de beleza para as mulheres chinesas solicitava pés pequenos, dessa forma, as mães chinesas amarravam com faixas apertadas os pés das filhas para deformá-los propositadamente, alterando a estrutura óssea natural, em prol de um tipo ideal de pés femininos. Tal tradição teve início como uma moda na corte da dinastia Sung entre as famílias nobres, e depois foi vazado para baixo, através das várias camadas sociais até os camponeses. (PAGLIA, 1993: 150)
Segundo a feminista Camile Paglia, tal prática foi lei absoluta, exceto para as classes mais baixas, do século XI ao XX. Todas as mulheres, a partir dos cinco anos tinham os pés enfaixados para restringir o crescimento, mantendo-os pequenos. Durante à noite a bandagem era afrouxada, a dor então piorava quando o sangue se precipitava para o pé. Estes pés eram deformados para transformarem-se no pé ideal, ou “pé de lótus de ouro”, de dez centímetros apenas. Mulheres cujos pés não possuíssem este padrão, não “arranjavam marido”, pés normais ou redondos eram obscenos.
A partir de 1912 o enfaixamento de pés foi proibido, antes disso, milhares de mulheres tiveram seus pés mutilados por essa prática, ou morreram de infecções causadas pela gangrena.
Paglia traça um paralelo entre o enfaixamento de pés na China e o uso dos saltos altos no Ocidente, que reduzem o músculo da panturrilha, comprimem e deformam os dedos e prejudicam a coluna, tendões de Aquiles se dobram para trás, tornozelos são torcidos ao andar, as costas ficam arqueadas, os seios são projetados para frente, as coxas são contraídas e as nádegas femininas arrebitadas, como se os saltos altos as colocassem num pedestal... Tudo da forma que as mulheres esperam aparentar e os homens admirar. As mulheres, realmente não se abstém de tal “sacrifício”, pois, certa vez Marilyn Monroe disse: “Não sei quem inventou o salto, mas as mulheres lhe devem muito.” (in STEEL, 1998:116)
Os padrões estéticos consensualmente adotados pela cultura sempre dizem respeito à cosmologia vivida num dado período sócio-histórico. Os pés deformados das jovens chinesas representavam as relações de gênero, posições sócio-simbólicas de homens e mulheres no Oriente. A prática tinha arreigo a valores da tradição, o que representava cultura e modus vivendi na China.
Entre os trombiandeses estudados pelo etnólogo Bronislaw Malinowski, em A Vida Sexual dos Selvagens a feiúra, (dentro dos padrões estéticos consensualmente aceitos na tribo) é como uma maldição, ela é castigo por violação de tabus. Quando a pele apresenta feridas, úlceras, erupções cutâneas, micoses, tal evento é associado a comer peixes proibidos, entre outros tabus. A feiúra na Melanésia é repulsiva, os trombiandeses têm medo dela, tanto que ela está relacionada à morte, neste caso, ao luto: Em face da dor ocasionada pela perda de um ente querido, seus familiares raspam a cabeça a fim de tornarem-se “feios”. “Enfeiar-se” é a transformação exterior imposta pelo luto. A cabeça é raspada, o corpo enegrecido com uma espessa camada de sebo misturada com carvão, vestes são incolores e deliberadamente manchadas, nenhum ornamento é usado, assim como nenhum perfume - esses são os sinais exteriores, corpóreos pelos quais os melanésios exprimem a dor.
“Embelezar-se” entre os melanésios é uma prática mágica, eles o fazem através de “magias da beleza”, práticas de ornamentar o corpo que incluem furar e dilatar a orelha, enegrecer os dentes com sebo e carvão, raspar as sombrancelhas, barba entre outros pelos com folha de obsidiana ou caco de vidro e, nas iniciativas eróticas, arrancar os cílios com os dentes.
Já Entre as mulheres afegãs, o rosto é essencialmente erótico e, ainda nos dias de hoje, é proibido mostrá-lo sendo obrigatório o uso pelas mulheres da “burka”, que cobre cabeça rosto e ombros, evento que inspirou coleções de Alexander Macqueen e Hussein Chalayan.
Os chineses, em seus primeiros contatos com o homem europeu, o acharam extremamente feio, com olhos redondos que eram como olhos de cachorro. Os trombiandeses da Melanésia, também achavam o homem ocidental repulsivamente feio, com olhos grandes como poças d'água, os cabelos finos e lisos que envolvem a cabeça como fios de im (fibra do pântano, usada para fabricar cordas), nariz cortante como lâmina de machado e pela branca como a de albinos.
Todas as culturas produzem rituais, tabus, modelos, até princípios de beleza que dizem respeito diretamente ao seu ethos e ao seu modus vivendi. Devemos salientar que a maior parte das culturas, até o século passado, era etnocentrada, isto é, tinha como referência e padrões de belo, de certo e de crenças, a sua própria cultura.
CONCLUSÃO
Se atualmente o padrão de beleza reificado pelo fenômeno moda apresenta mulheres esqueléticas de 1,80m, com rostos encovados, e se esse padrão é tomado como modelo desde o México até o Japão, passando pelo Brasil e países baixos, não é pela admiração e eleição consensual de tal modelo, não significa que em termos estéticos os diferentes povos e culturas não são mais etnocentrados, e sim que, o modelo étnico que prevalece no mundo contemporâneo, é o modelo da etnia dominante, neste caso, dos detentores do poder econômico, já que o poder está nas mãos de quem domina a economia de mercado.
O modelo anglo-americano de mulheres alvas de olhos claros, com altura superior a 1,75m e vinte quilos a menos que o normal é o padrão étnico predominante, mais nos Estados Unidos que na própria Europa, motivo pelo qual, em meio à diversidade cultural, de biótipos, de estética, de artifícios de beleza, este padrão sobrepõe-se aos demais e torna-se aceito como o padrão de beleza contemporâneo.
Mundo afora, mexicanas de quadris arredondados, cinturas finas e longos e grossos cabelos negros, lançam mão de dietas, lipoaspiração, vômitos, descoloração de cabelos e clareamento da pele, na tentativa de alcançar o padrão anglo-americano. A atriz mexicana Salma Hayek, uma das mais belas mulheres do cinema dos anos 90, possuía naturalmente coxas grossas, quadris arredondados, nádegas salientes, longos e grossos cabelos negros e um sinuoso contorno de corpo invejável. Ao tornar-se estrela de Hollywood, perdeu cerca de 10 quilos, diminuiu quadril, nádegas e coxas, cortou e alisou os cabelos com chapinha e clareou a pele. Perdeu sua beleza única e invejável para tornar-se mais uma boneca insípida de Hollywood, aderindo à estética em moda.
Os padrões étnicos dominantes na moda no decorrer do século XX ilustram relações de poder hierarquicamente estabelecidas na sociedade moderna. Se até os anos 50, em meio ao pós-guerra, prevalecia na moda o padrão norte-americano/europeu, ou padrão da sociedade judaico-cristã ocidental, a inserção de novos padrões étnicos de beleza na moda, significa que certas fronteiras políticas e culturais têm se dissolvido e se reformulado nas últimas décadas do século XX. A moda não foi razão para essas reformas, mas antecipou a elucidações dos signos desta em seu repertório estético, como vemos nas criações dos designers de moda eXtrema.
A função da grande indústria da moda (leia-se moda como mercado) no mundo atual é, entre outras coisas, consolidar um padrão hegemônico de estética. Diana Vreeland salientava que a função da moda era fazer com que uma mulher ouvisse sobre sua “aparição” em público: - “Ela está linda, simplesmente deslumbrante”.
Parte de nosso sonho de consumo em relação à moda é, assim como em culturas primitivas, sofrer a transformação, construção estética do corpo para integrar-nos ao padrão de imagem vigente - Seja jovem, magra e alta, seja bela... Esteja na moda!
A moda é explosão do desejo e poder femininos de transformar uma mulher no objeto de seus sonhos. Tal qual os povos primitivos, a ornamentação de corpo que se converte em arte, tem por objetivo inicia transformar o Homem em objeto de arte. O corpo modificado nos dias de hoje, é pois esculpido pela moda.
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