terça-feira, 14 de agosto de 2007

Costureiro, de artesão a livre pensador - A influência da filosofia e da arte na formação dos designers da Central Saint Martin’s School of Fashion

Costureiro, de artesão a livre pensador
A influência da filosofia e da arte na formação dos designers da Central Saint Martin’s School of Fashion

INTRODUÇÃO

Durante a pesquisa de campo realizada para a tese de doutorado Vestindo a Rua, Moda; Cultura & Metrópole, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em 2003, sob a orientação do Professor Doutor Victor Aquino, desenvolvemos um doutorado sanduíche com o auxílio da FAPESP, por meio do qual tivemos a oportunidade de trabalhar junto ao corpo de pesquisadores do The London Institute, instituição composta por cinco escolas: Camberwell College of Arts, Central Sain Martin’s College of Art and Design, Chelsea College of Art and Design, London College of Fashion e London College of Printing.
A intensa ‘produção de jovens gênios do fashion design’ nos anos 90 por parte da Grã-Bretanha e a forma como eles influenciaram o rumo da moda nos anos 80/90, foi razão para a pesquisa de campo realizada na Inglaterra e em especial, junto à Saint Martin’s, dado à reputação adquirida pela escola de ‘produtora destes gênios’.
O objetivo era investigar a relação entre o sistema de educação da Saint Martin’s e o sucesso dos estilistas de vanguarda que ditam a moda mundial — em grande parte, ex-alunos da escola que passaram a encabeçar as maiores maisons do mundo, de Dior a Givenchy — buscando descobrir a fonte deste sucesso na educação superior de moda elucidando os diferenciais no sistema educacional da escola. Pudemos participar de conferências e atividades de pesquisa, além de assistir a aulas técnicas e teóricas e realizar entrevistas com os diretores, professores e coordenadores da Saint Martin’s, o que foi de extrema importância para o enriquecimento conceitual da tese.
No presente artigo, a partir de uma breve repertorização histórica sobre o status do costureiro, relatamos investigações e resultados da pesquisa desenvolvida, visando, a partir dos dados empíricos, uma reflexão teórica sobre o tema em questão.




Couturier: De artesão a celebridade

Até o século XIX, o costureiro, então artesão, entrava na profissão, tradicionalmente, como aprendiz do oficio artesanal de alfaiate. Os primeiros couturiers, a partir do século XIX, a exemplo de Charles Fréderich Worth, ao formarem uma nova categoria profissional, abraçavam a profissão tal qual a entrada num universo artístico. Contudo, a partir do século XX, as estrelas da Alta Costura já adentravam o mercado como artistas de gênio, ‘descobertos’ tal qual um virtuose, pela legitimidade adquirida pela sua precoce obra.
Na contemporaneidade, a formação de um jovem costureiro e sua entrada no mercado da moda, agora objeto de fantasias juvenis, tal qual a carreira de um astro do rock ou uma estrela do esporte, concorrida e difícil, têm se institucionalizado através das escolas de moda, entre as quais, a mais famosa e concorrida, a Central Saint Martin’s School of Fashion and Design, em Londres, instituição onde desenvolvemos a pesquisa para este trabalho, onde se formaram as estrelas John Galliano, Stella McCartney, Alexander McQueen, Clements (Ignácio) Ribeiro, Hussein Chalayan, Antonio Berardi, Shelley Fox, Tristan Webber, entre outros.
Foi a partir dos anos 80 que o ensino das funções de moda se institucionalizou, em parte como uma área entre design e fine arts. No Brasil as escolas de moda tiveram início nos anos 90, como a Santa Marcelina, onde se formou Alexandre Herchcovitch e a Anhembi Morumbi, precursora dos cursos de pós graduação e cursos online em moda
Se durante décadas no século XX, a entrada de um jovem costureiro no mercado da moda se dava através da legitimidade adquirida pelo seu trabalho, o que lhe garantia entrada numa maison de renome, como fez Donna Karan, que era assistente de Anne Klein e após anos de trabalho na griffe, com o capital de legitimidade adquirido pôde fundar sua própria griffe; hoje a formação de carreiras igualou-se a áreas como direito, publicidade, economia; parte da educação de nível superior e de cursos de formação específicas.
Cursar uma escola de renome não significa a conquista de uma carreira, contudo, algumas escolas tornaram-se referência e possibilitam maiores chances. Isso se deve ao sucesso que a Central Saint Martin’s School of Fashion and Design adquiriu nos anos 90, quando quase todos os designers britânicos de destaque na década passaram pela escola. O curso de moda começou em 1989, a partir da união entre a Saint Martin’s School of Art e a Central School of Art and Design, ambas escolas de renome tanto na área de artes plásticas, quanto na área de design. Os cursos centravam-se em design têxtil, padrões de corte, design de produto e uma área exclusiva de pesquisa: history and fashion theory e dividia-se em bacharelado e mestrado. Caroline Evans coordenadora do núcleo de Fashion Theory da Saint Martin’s nos fala sobre o processo de seleção da escola:

“Primeiro eles entrevistam todo mundo. Eles querem saber quem sabe desenhar. É importante ser um bom ilustrador. Procuramos pessoas que tenham uma boa percepção visual. Eles olham seu portfolio. É muito competitivo. Você precisa ter muita determinação e saber que é isto que você quer. A idéia é desafiar e fazer a pessoa criar através de projetos, esses projetos são temáticos. Alguns são em branco. Algumas pessoas dizem ‘se você quer aprender técnica vá ao London College of Fashion, mas se você quer aprender a ser um designer, vá a Saint Martin’s’. Ser um fashion designer é como ser um arquiteto, você precisa ter várias e diferentes habilidades. Tem que saber projetar, entender de business, organizar as pessoas. Você tem que ter muita objetividade e determinação.”
[1]

Na verdade a Central Saint Martin’s faz parte do A estrutura do The London Institute é completa em termos de fine arts, design e fashion and theory. Pela sua estrutura, The London Institute tornou-se o maior centro de pesquisa sobre moda, com um corpo de pesquisadores que atuam nas áreas de design, fine arts e principalmente fashion and theory, área que tem crescido nos últimos anos.
Observamos que os estudantes e candidatos ao curso de moda, são pessoas das mais diferentes etnias e países, pudemos encontrar estudantes de praticamente todos os continentes. Contudo, a quantidade de estudantes orientais se mostrou superior às outras etnias. Muitos italianos(as) também buscam fazer os cursos para posteriormente trabalharem na indústria de moda italiana.
Grande parte dos estudantes tentaram por vários anos o ingresso na Saint Martin’s, que possui como caráter de excelência em sua estrutura um processo de seleção extremamente rigoroso. Toni Lester, uma das coordenadoras dos cursos nos relatou que, a escolha dos estudantes é uma das coisas que mantém o altíssimo nível da escola, cada candidato é escolhido muito criteriosamente, para que o corpo discente seja composto apenas por jovens candidatos ao sucesso no mundo da moda.
Os profissionais que selecionam os candidatos aos cursos de moda buscam descobrir talentos natos, dado que a proposta da escola não é ‘ensinar moda’, mas desenvolver o potencial dos alunos através dos projetos temáticos nas diversas áreas do campo do design e fashion and theory.
É fato que as grandes maisons foram buscar nos jovens designers ingleses o capital simbólico necessário para, de tempos em tempos, injetar inovação no repertório de criações das casas. É fato também, que estes jovens passaram pela Saint Martin’s, o que nos levou ao questionamento do papel da escola nos caminhos da moda eXtrema dos anos 90/00.
John Galliano não é inglês, é de Gibraltar, nem tampouco Hussein Chalayan possui origem britânica, ele nasceu na Turquia, mas assim como Rifah Ozbek, Azzedine Alaya e Martin Margiela, eles fazem parte da safra inglesa de designers radicais (quase todos passando pela Saint Martin’s), que se formaram em torno da moda radical inglesa, em especial, da moda londrina.
As ruas de Londres espelham essa realidade, mais de cinqüenta por cento da população é composta por estrangeiros, pessoas das mais diferentes regiões, etnias e credos, que conforme Zandra Rhodes
[2] se misturam de forma única nessa cidade. Assim, a idéia de globalização que marcou os anos 90, de desterritorialização e rearticulação de elementos simbólicos, já há muitas décadas é parte do mosaico cultural londrino.
Quando McQueen e Galliano apresentam nas passarelas criações que incorporam peças do vestuário de etnias não-ocidentais, a mídia abre suas manchetes dizendo que os designers foram buscar no Oriente médio ou na Índia ou na Jamaica a inspiração para a nova moda. Isso é uma verdade parcial, pois, geograficamente, eles só precisam andar por High Street Kensington, Soho ou Candem Town para obter inspirações sobre “o outro”.
O fato de a Inglaterra explorar em termos de design de moda elementos étnicos, históricos ou religiosos, é algo particular do universo da moda britânica. Do exótico design têxtil oriental de Zandra Rhodes às referências ao Islamismo nas peças de Galliano, ou a sombria alusão de McQueen aos genocídios ocorridos na Grã-Bretanha, a referência matriz para a concepção estética não está nas terras orientais ou na Escócia, mas nas ruas da metrópole que mais agrega etnias diversas no mundo: as ruas de Londres.
Muito antes do controverso fenômeno da globalização servir como explicação para fusões étnicas que vem ocorrendo ao longo de décadas, em Candem Town, islâmicos de turbante vendem burkas com a bandeira da Inglaterra, ao lado de indianos vestidos em seda artesanal vendendo batas indianas com dizeres em inglês, junto aos jamaicanos vestidos à moda rastafári que vendem mantos com as cores jamaicanas e o famoso haxixe nos becos do bairro.
Antes de tomarmos como concretas as manchetes da Vogue sobre a nova moda global, étnica, oriental, pensemos se tudo isso não é apenas a moda da rua, dos becos e guetos de Londres, do underground e da vida noturna, onde mulheres que escondem os rostos sobre burkas negras dividem o mesmo espaço, desde os anos 60’ com garotas de mini-saia e umbigo de fora.
A Londres metrópole como “paraíso étnico”, que recebeu no último século milhares de imigrantes asiáticos, europeus, jamaicanos entre outros, está muito além da “exploração de temas étnicos” na moda. Hussein Chalayan nasceu em Cyprus e cresceu em Londres, sua narrativa cultural expressa na roupa, é naturalmente influenciada pelo oriente médio. McQueen é influenciado por sua raiz cultural flamboyant. Mesmo a London girl Stella MacCartney, sofre influencia direta das ruas de Canden Town e Portobello, onde as etnias diversas compõem o cenário cultural mais rico de Londres.
Pensamos o que conglomerado LVMH busca capitalizar para suas griffes ao incorporar os designers britânicos... Certamente não uma ‘concepção de elegância’ mas a raiz cultural evidenciada nas criações de designers ingleses, o universo das idéias traduzido em estética que tem encantado e aterrorizado as celebridades nas primeiras filas dos desfiles parisienses. É o que Paris busca como capital simbólico agregado às grandes maisons, designers que ‘vistam a rua’, que incorporem a vida urbana contemporânea em suas criações.
Vimos que desde o século XIX, costureiros, ainda artesãos sem renome, já faziam menções à história e cultura antiga em vestidos femininos, como os padrões gregos no estilo princess line. Contudo, a grande mudança veio quando essas menções passaram de pura citação histórica para carregar um sentido político, ideológico, um pensar sobre o tema. Colin McDowell argumenta que Yves Saint Laurent foi o primeiro a realizar tal tarefa através da coleção ‘Forties’, lançada em 1971. Segundo o autor, Saint Laurent não usou meramente roupas de um dado período histórico como inspiração para uma coleção; mas ele abriu a história como um ilimitado espaço para idéias. Sua coleção baseada nas roupas que as mulheres usavam no período da segunda guerra mundial tiveram impacto político e social na França, dado que o povo não esqueceu a sombra da suposta colaboração com os alemães, expondo tensões políticas não esquecidas e gerando constrangimento junto à mídia francesa, o que repercutiu em polêmica jornalística.
A partir daí são plantadas as sementes da moda eXtrema, onde o corpus estético da roupa não retém meramente menções históricas mas torna-se espaço aberto para uma dialética, tal qual a arte em seu sentido profundo, um discurso sobre a realidade através da abstração e da fantasia e, no melhor sentido artaudiano, uma provocação, que transcende funções do vestuário e da reificada concepção de elegância, tornando-se um tema ‘maior’, adentrando, como dissemos, o mundo das idéias.
A diferença da coleção Forties de Saint Laurent para o retrô meramente pastiche da Haute Couture reside justamente no sentido cultural, no valor simbólico, político, intelectual da coleção, o mesmo valor que vemos hoje nas bizarras criações de McQueen e nas abstrações de Hussein Chalayan. Forties não teve sucesso com a mídia, a imprensa francesa atacou Saint Laurent, mas a coleção marcou a nova fase da moda como seara do pensar. Essa tendência foi reforçada nos anos 80 com o japonismo na moda. Segundo Claire Wilcox, curadora do evento Radical Fashion, os ideais de beleza de Yohji Yamamoto são mais filosóficos e intelectuais, assim como as metáforas visuais nas criações de Rei Kawakubo.
São essas características que marcam as diferenças na moda dos novos designers, características que fizeram escola em Londres, uma escola que influenciou toda a moda dos anos 90 e que se converteu em linhas mestras da Saint Martin’s School of Fashion.
Segundo Caroline Evans, a riqueza cultural da moda londrina tem a ver também com a formação dos estudantes em Londres, com o sistema das escolas de arte em toda a Inglaterra:

“Em Londres você tem muitas escolas de arte e design e mesmo no colegial os jovens têm muito contato com esse universo. Na Central Saint Martin’s por exemplo, você pode estudar pintura, fine arts, e muitas das disciplinas de design, não arquitetura, mas tudo além disso. Para mim isso é a grande diferença entre a inglesas e outras culturas européias, são os sistemas de escolas de arte na Inglaterra. A diferença é que na Inglaterra as escolas não preparam os estudantes para a arte comercial no que diz respeito ao design, elas tentam ser verdadeiramente artísticas de certa forma.”
[3]

Evans ressalta que a moda inglesa e seus expoentes são muito mais importantes em termos de significado cultural do que economicamente, pois embora os designers ingleses sejam particularmente criativos e instintivamente ousados, em termos de indústria e mercado, a moda inglesa não possui infraestrutura, uma ironia se observarmos que a Inglaterra (e especialmente Londres) foi um forte pólo durante a revolução industrial do século XIX; a indústria de lã já estava desenvolvida e capitalizada na Inglaterra desde o século XVIII e a indústria de algodão foi um ponto forte no século XIX, além das polêmicas “fábricas de suor”, indústrias da confecção e outras áreas que empregavam jovens mulheres com condições desumanas, citadas por Karl Marx em O Capital.
Conforme Elizabeth Wilson, a indústria do vestuário na Inglaterra sucumbiu frente às adversidades gradativamente a partir da segunda guerra mundial, o número de empregados nas fábricas descia mais de dois por cento ao ano, a moda inglesa passou a estar dominada por meia dúzia de fabricantes gigantes e as empresas médias eram compradas por esses gigantes ou obrigadas a fechar. Ao mesmo tempo, a concorrência dos países asiáticos e as importações baratas aumentavam o fechamento de cada vez mais fábricas na Grã-Bretanha. Com o governo de Margareth Tatcher, a indústria da moda foi por fim devastada e o número de empregados nesta indústria baixou de 310.000 em 1979 para 200.000 em 1982. Como nos fala Wilson:

“Algumas firmas fecharam, outras dedicaram-se ao fabrico no estrangeiro, houve uma mudança dramática na estrutura da indústria do vestuário. Na década de 70, ainda havia 7.000 companhias na Inglaterra, com 70% dos trabalhadores concentrados em 200 ou 300. Em 1983, havia só 5.000 companhias e as suas dimensões médias eram muito reduzidas ¾ por causa das oficinas “de suor” e das pequenas firmas. Nas grandes fábricas também, as condições pioravam rapidamente, por meio de despedimentos sumários, com o desaparecimento súbito de fábricas e fechamentos repentinos sem aviso prévio ou acordos.” (WILSON, 1986: 112)

Assim, a indústria da moda na Inglaterra praticamente ‘quebrou’, e a situação das empresas que restaram vem piorando cada vez mais com concorrência das fábricas asiáticas e dos países de terceiro mundo. Atualmente, todos os couturiers londrinos confeccionam suas criações em fábricas do grande pólo industrial italiano, já que a Inglaterra não possui uma indústria para esta produção. Vemos que nas etiquetas das roupas de McQueen, Westwood e Chalayan, todas são Made in Italy.
A socióloga inglesa Angela McRobbie desenvolveu uma pesquisa sobre os jovens fashion designers britânicos, em seu livro British Fashion Design: Rag Trade or Image Industry (1998) ela defende a idéia que a área de fashion design em Londres deveria chamar-se ‘fine art fashion’, dado o caráter artístico das produções londrinas. McRobbie salienta a proximidade entre moda inglesa da última década e a arte conceitual, o que foi intensificado pelas exibições dos museus londrinos, ela também destaca o background dos jovens designers londrinos, vindos da periferia e decisivamente low class, a exemplo de McQueen, o que torna Londres um novo pólo cultural onde todos têm condições de produzir arte e esta se torna um bem acessível a todos.
Se a moda inglesa não pode contar com infraestrutura industrial e de mercado, ela se lança inegavelmente ao encontro da arte. Segundo Caroline Evans, quando os estudantes deixam as escolas de moda, não possuem nada que os apóie, por isso os jovens designers ingleses parecem ‘desesperados’ em suas criações, eles não têm nada a perder, por isso criam uma moda tão ‘aventureira’, polêmica, não-comercial.
[4] Na Inglaterra os jovens não possuem um mercado que os absorva, eles saem das escolas com um incalculável capital cultural e artístico, mas se deparam com um grande ‘deserto’ em termos de indústria da moda. Conforme Evans:

“É totalmente diferente de quando o estudante deixa a escola e começa a fazer novas grifes e desfiles na França, pois a França tem uma história de indústria da moda, e dentro da cultura francesa, a moda é muito importante, é muito mais respeitada que na Inglaterra; o governo inglês não apóia a indústria da moda, não a leva a sério, mas na França, o governo apóia, pois é economicamente muito mais significante, porque desde o século XIX, a indústria da moda é muito importante para a economia da França, você tem associações a órgãos de apoio a esta indústria. Pense na indústria da seda na França desde o século XVIII, é enorme, então isso é respeitado na economia francesa. Por tal razão, quando os estudantes saem da escola na França, eles vão direto para um trabalho, porque existe toda uma infraestrutura para apoiar esses jovens em seu início de carreira na moda, o problema então, é que eles têm que se adequar a essa estrutura, suas criações devem se ajustar à concepção francesa de moda e às hierarquias pré-estabelecidas das maisons”.
[5]

Na Inglaterra, ao deixar as escolas de moda, os jovens designers que se aventuram no escasso mercado, só conseguem notoriedade se obtiverem cobertura da imprensa. Nos anos 90’, os desfiles de moda na Grã-Bretanha tornaram-se extremamente espetaculares, já que os designers de Londres são particularmente criativos pelo background que possuem das escolas de arte ¾ o que é uma parte da história da educação inglesa. Em parte, a razão para essa “espetacularidade e criatividade singular” é a falta de oportunidade de mercado e já que Londres é um pólo cultural especialmente forte, com organizações, eventos e cooperativas de jovens artistas, os designers de moda são menos produtores comerciais que produtores artísticos, eles recusam padrões comerciais e industriais de moda e passam a fazer parte do meio artístico londrino, onde são apoiados por jovens artistas de outras áreas.
Comercialmente estes jovens não têm para onde ir, para onde se direcionar. Dentro da indústria da moda, a Grã-Bretanhã é um “pequeno jogador”, um mercado em pequena escala, quase artesanal. Um jovem designer deixando a escola necessita dos jornais para tornar seu trabalho notório, para apóia-lo, pois não possui apoio financeiro ou comercial. Não existe uma indústria para dar-lhe um emprego e uma possibilidade de carreira. Eles precisam ter cobertura de imprensa para obter atenção.
Quando estes designers demonstram que podem ser brilhantes nas exibições de passarela, que conseguem fazer algo espetacular, como um desfile chocante, isso desperta o apelo comercial e então, designers como Alexander McQueen e John Galliano são recrutados para maisons conservadoras como Givenchy e Dior, pois demonstram ser showmens espetaculares, que começaram apresentando suas coleções em mansões “emprestadas” de clientes porque não tinham dinheiro para produzir seus desfiles e terminaram influenciando os caminhos da indústria da moda.
A exemplo da solidariedade entre os jovens artistas londrinos, os jovens ‘couturiers’ tornam-se designers de produção de desfiles de colegas, outros trabalham em outras áreas de moda, como marketing ou publicidade, ou na publicação editorial de moda. Todavia, grande parte dos alunos que passam pela Saint Martin’s acabam trabalhando para alguma grande maison ou designer em Paris, Milão ou New York. Eles conseguem entrar no grande mercado, mas para isso precisam sair de Londres.
Allistair O’Neill, professor da área de design e história da arte na Saint Martin’s, ressalta que quando os estudantes vão deixar a escola, dizem algo como “Eu tenho um trabalho com Calvin Klein”, mas na verdade, eles não têm. Acabam trabalhando no mercado local. Na Saint Martin’s, grandes números de estudantes se formam todo o ano, mas nem todos conseguem entrar no mercado. Quando eles entram no curso todos querem ser “o próximo Galliano”, mas se você tem 160 estudantes se graduando por ano, você terá sorte se tiver um Galliano no meio deles
[6].
Dado a conversão da escola em centro de referência, muitos designers vem para “recrutar” estudantes de moda. Muitas vezes chega para os alunos a notícia que Stella McCartney virá na próxima semana contratar alguém para trabalhar com ela. A Saint Martin’s possui 7 diferentes caminhos para quem quer seguir moda. Cinco deles são caminhos de design, os outros dois são especialização em marketing de moda e especialização em produção e tecnologia têxtil. Em design, outro caminho é a especialização em roupas masculinas. Alguns alunos ainda optam por jornalismo de moda e áreas afins desta indústria. Um novo caminho é teoria e história da moda, que segundo Caroline Evans, coordenadora da área, é muito interessante pois não é uma área separada do resto da grade, esta nova área é especial por ser um novo caminho aberto na moda, pois desdobra alianças entre a cultura e a indústria da moda.
Vemos que durante muito tempo no campo da moda, estudar design de moda era importante e teoria e história não eram. Todavia isso tem mudado nos últimos anos, pois as pesquisas acadêmicas têm se tornado mais sérias e importantes para o mundo da moda, o mundo científico/acadêmico tem reconhecido a importância da moda e grandes publicações têm sido feitas, o que aumenta a importância da área.
Graças à aliança entre estudos culturais, história da arte e moda, a moda londrina tornou-se um centro de criação e produção tão peculiar, gerando, como já dissemos, uma criação que adentra o campo das idéias, da arte conceitual, da filosofia. Isso gerou, na Londres dos anos 90’, um novo tipo de fashion design, uma forma muito mais conceptual que está se estendendo para outros lugares e direcionando rumos da moda, a partir do momento em que os jovens criadores que constituem esta nova corrente passam a encabeçar as grandes maisons francesas.
Londres criou um espaço alternativo para a moda, um espaço para a roupa experimental. Mais do que isso, gerou novas searas para o que se concebe como moda. Temos o que aqui conceituamos como a grande indústria da moda, cujo centro é a França, através das grandes maisons, cujas criações geram tendências que se tornam simulacros no mundo todo através da indústria da confecção, e temos a moda conceitual cujo centro é Londres, que denominamos moda eXtrema, experimental, mais próxima da arte e filosofia que da indústria.
No passado por não ser comercial, essa moda não possuía espaço no mercado. A partir dos anos 90, essas novas correntes abriram espaço para os mais diferentes tipos de moda. Mercados de nicho surgiram na Europa e USA, embora pequenos em termos econômicos, possuem uma clientela fiel.
Podemos dizer que este mercado está mais próximo do mercado da arte do que da grande indústria da moda, as roupas são relativamente caras e únicas, segundo Caroline Evans, é um mercado para pessoas com dinheiro. Um exemplo dos produtores desta moda é Shelley Fox, uma designer tipicamente londrina, cujo trabalho é bastante experimental, com roupas feitas à mão, experimentando novos materiais e formas. Fox cria peças queimando tecidos, ‘destruindo’ de várias formas os tecidos usados, criando peças únicas, com uma base de trabalho artesanal, com cada peça diferente da outra. A estética do trabalho é muito contemporânea, pois consiste em realizar processos em determinados materiais que “marcarão” a roupa através de ácidos, fogo, furos, formas de “estragar” o material e se criar algo inusitado, imprevisível com a roupa. Esse mercado pequeno, criado para esse tipo de vestuário é algo como um mercado de elite. Shelley Fox vende no Japão, Itália e Grã-Bretanha, nada em grande quantidade. Suas criações são vendidas em lojas que vendem também Comme Dês Garçons. Hussein Chalayan, Issey Myiake entre outros designers do grande mercado. Shelley não se torna mass market, mas vende no mesmo nível dos grandes designers. É uma forma comercial diferente do mercado de massa.
No livro The end of fashion, um trabalho sobre marketing e moda na América a autora aborda griffes como GAP, e Tommy Hillfigger argumentando que essas griffes não são realmente moda, pois se alguém quer vestir Alexander McQueen por exemplo, é porque quer parecer diferente, mas se alguém quer vestir GAP e Tommy Hillfigger, na verdade quer parecer como todo mundo, o que descaracteriza a busca por diferenciação na moda. Essas griffes pertencem a uma escala mundial, da necessidade de conformidade, de adequação, de uma beleza convencional, é sobre isso que GAP e Tommy Hillfigger falam. A moda londrina é praticamente o oposto disso, é mais experimental, globalmente menor, mais avant-gard e certamente é minoria, diferente da moda do mercado global.
Paralelamente à globalização de padrões e mercados na moda e conforme grandes griffes, principalmente norte-americanas buscam ‘pasteurizar’ a imagem dos códigos de moda, a moda eXtrema encontra sua força na oposição a esses valores, gerando contrastes que se aproximam da relação arte X indústria, irreverência X conservadorismo, intelectualidade X valores pequeno-burgueses. Contudo é o movimento dos contrastes entre estes opostos que movimenta a engrenagem da moda contemporânea.
Zandra Rhodes
[7], quando questionada sobre a moda contemporânea, salientou que em sua opinião, como uma designer tipicamente inglesa, a moda na grande indústria e comércio hoje, torna-se um bom trabalho de edição. Ela ressalta que os americanos são ótimos editores, o que eles fazem não é nada novo, mas eles editam muito bem, como Donna Karan ou Calvin Klein, nada é original, é editado.
Vemos que no universo da moda, a ‘dança dos opostos’ ocorre tal qual em outros campos, como o da música. Temos por um lado o grande mercado global dos conglomerados franceses e ‘editores’ de moda norte-americanos e por outro lado o mercado de nicho dos jovens designers britânicos, no padrão Saint Martin’s School. E então temos a confirmação da teoria de Pierre Bourdieu, onde as grandes maisons detentoras do capital de renome e do grande mercado, buscam o capital cultural dos jovens designers transgressores a fim de converter o capital simbólico em capital econômico.
McQueen e Galliano antes de entrarem para Givenchy e Dior, moravam em Londres, em pauperidade, com todos os seus amigos trabalhavam para, eles de graça. Diferentemente da Semana de Moda de Paris e a de Milão, é tradicional na London Fashion Week que nos desfiles mais experimentais todos trabalhem sem remuneração, mesmo os grandes nomes, as pessoas que vão para New York e Paris, pessoas que cuidam da produção, da maquiagem, dos cabelos. Em New York eles são remunerados, mas em Londres eles fazem isso ‘por amor’, produzem desfiles espetaculares por nada. Quando John Galliano foi para Paris, antes de ir p/ a Givenchy, não possuía mínimas condições de produzir uma coleção, contudo tinha uma amiga sociallite que lhe emprestou sua casa para o primeiro desfile do designer. Galliano confeccionou toda a coleção em preto, pois não tinha dinheiro e os tecidos pretos, brancos e bege são mais baratos. (sempre que um designer faz uma coleção em branco é porque na verdade ele não tem verba). Designers assim trabalham sem capital, seu dinheiro na verdade não existe, mas eles possuem um enorme capital cultural, o que acaba sendo o mais importante
[8]. Designers como Galliano e McQueen, quando vão trabalhar para Givenchy e Dior, investem o dinheiro que ganham eles em suas próprias griffe, que são bem mais extremas que as maisons francesas.
Os designers da moda eXtrema se formam, sobretudo, sob o ponto de vista de uma concepção estética de beleza incomum. Mais próxima do universo da arte, é uma estética do refletir sobre a forma e a concepção de beleza, é o universo das idéias compondo o universo da estética. Um exemplo deste conceito está na mais famosa e requisitada modelo inglesa, Sophie Dahl, completamente fora dos padrões de beleza do senso comum na moda, a gorda Sophie tornou-se a darling dos designers britânicos, com seu olhar um tanto estrábico e um cabelo diferente a cada estação.
Enquanto nos anos 90 Calvin Klein lança o padrão de modelos ‘heroin chic’, (sendo processado posteriormente por usar modelos viciadas em heroína de verdade), com as garotas esquálidas parecendo ‘derrubadas’ numa bad trip, o exagero em Londres, em termos de padrões de moda era maior, os britânicos colocaram ‘gordas’ na passarela, o que dentro de um sistema de padrão estético reificado na magreza, era uma atitude muito radical.
O sucesso de Sophie Dahl se deve às propostas ideológicas da moda conceitual dos anos 90, enquanto a tradição parisiense de maisons como Chanel exige magreza extrema, os uma britânicos realizaram uma auto-crítica ao universo estético da moda que na verdade refletiu questionamentos sociais e políticos acerca do efeito da moda sobre a saúde física e psicológica das mulheres.
Isso também tem a ver com a proposta de designers como Alexander McQueen, de trazer para o palco da moda a dor dos excluídos, como a inserção de modelos com deficiências físicas nos desfiles. Pensemos pois, que em termos de moda, ninguém é mais excluído que os obesos e, entre todas as atitudes eXtremas de McQueen, nada chocou mais os ‘entendidos em moda’ do que lançar uma mulher obesa seminua na passarela. McQueen busca o lado sombrio da história, como as prostitutas da era vitoriana, os genocídios ocorridos na história da Grã-Bretanha, temas não associados tradicionalmente com a moda. Isso, pois a moda londrina é sobre impressionar, chocar, com significados sombrios. Nesse contexto, ela é sobre recusar a beleza convencional e explorar o lado sombrio. Caroline Evans ressalta, sobre a relação entre moda e corpo:

“No século XIX havia o corset, que formava uma disciplina do corpo. Agora as mulheres não usam o corset, mas na verdade acho que elas apenas internalizaram essa disciplina, pois elas buscam a mesma imagem conseguida com o corset através da ginástica, lipoaspiração, massagem redutora... Eu acho que estamos o tempo todo regulando ou produzindo nossos corpos através da cultura, a forma como simbolizamos nosso corpo, fala a respeito do nosso sistema de crenças, de que nós marcamos essas crenças em nossos corpos... Nos anos 50 as mulheres começaram a fazer exercícios físicos, numa escala em que elas nunca tinham feito antes. Isso está extremamente relacionado com mudanças no underwear e na moda. Não haviam mais corset, então elas começaram a fazer exercícios. Nos anos 60 houve uma outra mudança em roupa de baixo, com Twiggy e os biquínis. Acho que não é nada novo, mas foram criadas novas tecnologias para o corpo e do corpo. Agora existe muito mais possibilidade em cirurgia plástica, por exemplo, e os significados culturais mudaram. Como a forma extrema de você modificar seu corpo era o exercício, o que anteriormente era muito masculino. Pense nos anos 80, quando as mulheres começaram a construir seus músculos, então houve uma mudança de estética... Se você olha para as modelos e atrizes do padrão atual, elas não parecem bonitas, pois são muito magras e tem cabeças grandes. Você olha e diz, não há como ficar mais magra. Mas por outro lado, estamos ficando mais altos. Dentre todas as coisas chocantes que McQueen já fez, a mais chocante foi colocar uma mulher gorda num desfile de modas, pois uma mulher gorda é a coisa mais chocante na moda. Mas ao mesmo tempo em que existe essa busca abusiva pela magreza, está aumentando no mundo o número de pessoas obesas.”
[9]

O polêmico desfile de McQueen das “caixas de vidro”, que posteriormente foi apresentado na forma de uma instalação no evento Radical Fashion, subverteu a ordem racionalizante da magreza. Ele conta com duas caixas de vidro, uma é de vidro espelhado com modelos magérrimas dentro, através desta caixa, a audiência podia ver a si própria e ao mesmo tempo ver dentro as modelos magras e lindas nas paredes de vidro. No final do desfile, ele apresenta uma caixa de vidro diferente, e quando a caixa se abre aparece uma mulher muito gorda, como num show de aberrações que se torna a estrela do desfile.
Um outro ponto fundamental na formação dos designers ingleses ‘eXtremos’ consiste nas reformulações nos padrões de alfaiataria, a grande especialidade dos britânicos no campo da moda há séculos. A partir da metade dos anos 90, designers começaram a explorar arquitetonicamente padrões de corte que, transcendendo o contexto de alfaiataria, tornaram-se arte sob o ponto de vista do design.
Essa redefinição de padrões de corte está presente no trabalho de praticamente todos os designers britânicos da nova geração, de McQueen a Hussein Chalayan e, pelo que foi observado durante nosso estágio de pesquisa na Central Saint Martin’s School, é um ponto chave no curso de moda, a exploração de novos padrões de corte, de novas proporções e novas idealizações das formas do corpo, muito menos uma preocupação com a elegância do que uma experimentação artística.

CONCLUSÃO

Tivemos a possibilidade de observar que o sucesso das escolas de moda na Inglaterra, em especial, da Central Saint Martin’s se deve à proposta por parte destas instituições de promover desafios aos alunos de moda, através de intensa atividade de pesquisa teórica e prática, com o desenvolvimento de projetos individuais que primam pela autenticidade e ousadia, principalmente na emergente área de fashion and theory, que auxilia, junto às outras áreas, a formação de designers intelectualizados e questionadores que trazem contribuições críticas ao universo da moda.
O grande diferencial observado junto às escolas de moda inglesas, é a formação, antes mesmo de um centro de ensino de moda, de um rico pólo cultural, cujo trabalho desenvolvido na área de moda é profundamente influenciado por elementos culturais, filosóficos e científicos. O criador de moda oriundo destas escolas, não é um couturier, mas um artista intelectualizado que trabalha moda como um meio estético de criação de significados, para além de ‘costura’, a moda para estes centros é ‘cultura’.
[1] Em entrevista para esta pesquisa Caroline Evans
[2] Em entrevista para este trabalho Zandra Rhodes
[3] Em entrevista para esta tese Caroline Evans.
[4] Em entrevista para esta pesquisa Caroline Evans
[5] idem
[6] Em entrevista para esta pesquisa Allistair O’neill
[7] Em entrevista para esta pesquisa Zandra Rhodes
[8] Em entrevista para esta pesquisa Caroline Evans
[9] Em entrevista para esta pesquisa Caroline Evans

Vestindo a Rua: Moda, Comunicação & Metrópole

RESUMO[1] - Palavras-chave: Moda, Comunicação, Cultura Urbana Contemporânea

Este artigo apresenta uma reflexão teórica sobre os significados da criação em moda, seus aspectos simbólicos e ideológicos e a confluência com a cultura urbana contemporânea {rua) nas duas últimas décadas do século XX. O objetivo deste artigo, baseado nas pesquisas da tese de doutorado “Vestindo a Rua, Moda, Cultura & Metrópole” foi elucidar as significações culturais da moda concebida por criadores de vanguarda na atualidade e expor alguns aspectos políticos, estéticos e ideológicos que a compõem e a diferenciam da moda das décadas anteriores. Sobretudo, investigamos a moda como uma forma de comunicação que discursa sobre realidades e abstrações da vivência na sociedade atual. O discurso desta moda é aqui apresentado através da abordagem do trabalho de designers selecionados por sua importância neste universo.

ABSTRACT – Key-words: Fashion, Communication, Contemporary Urban Culture

This work presents a theoretical reflection about the meanings of the creation in fashion in it’s symbolic and ideological aspects and in the confluence with the urban contemporary culture (street) in the two last decades of the XX century. The objective of this article, based on the research for the PhD. Thesis “Dressing the Street: Fashion, Culture & Metropolis was to elucidate the cultural meanings of the fashion conceived for cutting edge designers in the present time and to display some of the politicians, aesthetic and ideological aspects which compose it and differentiate it of the fashion of the previous decades. Above all, we investigate the fashion as a communication form that develops speeches on realities and abstractions of the experience in the current society. The speech of this fashion is presented here through the approach of the work of the designers selected according to their importance in this universe.

INTRODUÇÃO

O fenômeno moda, entendido como um sistema de mudanças sazonais de tendências que acompanham o vestuário (e, atualmente, tantas outras categorias de bens de consumo como carros, celulares e mobiliário) e onde a obsolescência programada de produtos é orientada pela dinâmica de mercado, é aqui abordado em sua confluência com a cultura urbana contemporânea (que aqui, em referência ao trabalho de Roberto da Matta, A Casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. 1997, denominamos rua) e com o advento de comunicar, expressar, representar muito do que são as idéias, os valores e as formas de vida na moderna urbe.
O recorte dado ao tema no presente artigo, concentra-se numa reflexão sobre estatutos socioculturais que definem muito do que constitui o fenômeno moda desde as últimas décadas do século XX até o presente momento, onde percebemos uma relativa inversão de valores, por meio da qual a criação de designers que influenciam o grande mercado do vestuário (sobretudo, os designers da nova vanguarda inglesa), torna-se o corpo de mensagens de crítica e até mesmo autocrítica acerca do universo da moda, como vemos nas criações de Alexander McQueen e Hussein Chalayan
[2] — um produto da fragmentação de ideais que acompanha a moderna sociedade, que questiona a própria noção de beleza e busca a beleza ideológica do bizarro para subverter a ordem da elegância típica da Alta Costura e da grande indústria das confecções.
Este fenômeno teve início, em grande parte, quando os mencionados designers passaram a inspirar-se na vivência de grupos de estilo que habitam as ruas de capitais como Londres, Milão, Paris e São Paulo e trouxeram para suas criações, muitos dos elementos desta cultura vivida literalmente na rua.
Após quatro anos de pesquisa, realizada entre Brasil e Europa, (em Milão e Londres) desenvolvida por meio de um doutorado sanduíche financiado pela Fapesp, elucidamos alguns pontos que são aqui debatidos numa reflexão crítica acerca da moda gerada pelos mencionados criadores de vanguarda, como Hussein Chalayan, Alexander McQueen e Vivvienne Westwood. Estes criadores são designers nascidos na efervescência do universo da moda de Londres, e foram selecionados como objeto de pesquisa pela relação entre suas criações pouco convencionais a partir dos anos 1980 e as manifestações estéticas e culturais da moderna urbe ocidental. Esta escolha restringiu-se à moda européia, sem a menção aos criadores brasileiros, pela influência que os criadores ingleses exerceram no direcionamento de tendências do grande mercado da moda global.
Assim, no reconte dado a este artigo, a moda que conceituamos como eXtrema
[3], constitui a transformação da expressão de moda clássica em seu oposto: a elegância e a distinção sucumbem frente ao belo conceitual do bizarro e da inserção do Outro, da diferença, da alusão aos excluídos num universo outrora regido pelo glamour. Enquanto para muitos as roupas rasgadas e os vestidos transparentes que expõem os seios são subversão, para a moda eXtrema isso apenas promove o espetáculo da pseudo-transgressão. A crítica para estes novos criadores de moda, é apresentada como o questionamento da própria moda como um sistema reprodutor de padrões hegemônicos de estética, de noções pré-estabelecidas do que constitui o belo, em atitudes como a de Alexander McQueen, cuja estrela dos desfiles é Sophie Dahl, uma manequim gorda, e cujo trabalho dá voz aos excluídos como os obesos e os deficientes físicos. McQueen ilumina modelos sem pernas para os olhos de clientes de primeira fila que choram por não terem novos sapatos.
Essa moda eXtrema que ‘veste a rua’, se veste de rua, ao mesmo tempo em que nos veste com dimensões simbólicas que representam essa rua, incorpora, ao seu tempo, a cultura urbana da metrópole, da crise das categorias sociais como sexo, fé, família, da inversão de valores, dos extremos que vão da moderna guerra tecnológica às uniões entre parceiros do mesmo sexo, passando por uma reavaliação dos paradigmas que, conforme o filósofo Gilles Lipovetsky na obra O império do efêmero, estruturam a forma moda: a sedução, o efêmero e as diferenciações marginais.

A Moda e a Rua

Abordando a rua como pólo desterritorializado de convergência de muitos dos valores e idéias vivenciados na sociedade contemporânea, e observando esta rua como o foco inspirador das criações dos designers de vanguarda, tomamos como referência, o conceito de rua definida por Roberto Da Matta (1997:55) como: lugar da individualização, de luta e de malandragem ¾ espaço onde relações de poder se instituem e grupos disputam territórios geográficos ou simbólicos — um espaço geograficamente desterritorializado ocupado por identidades múltiplas que transitam por espaços reais, virtuais e imaginários. O conceito rua, “emprestado” do autor, é aqui analisado em seus atributos tal qual uma metáfora da sociedade urbana contemporânea e, não necessariamente, em sua relação com o conceito de “casa” (as relações familiares, a vida privada), mas sim como um elemento de referência para as relações vivenciadas, as idéias e as inquietações vividas no espaço urbano.
A experiência da rua está no corpo da arte, da música, da WEB. A vivência urbana contemporânea assume novos corpi, e o processo de socialização e comunicação desloca-se progressivamente ao compasso da evolução dos meios de comunicação. A rua deslocou-se para o virtual gerando experiências onde o sensorial e o comunicativo são afetados pela dimensão espacial e temporal da WEB.
A moda contemporânea dos designers de vanguarda ingleses, orientada por referenciais estéticos, comportamentais e de estilo derivados da rua, torna-se mais que roupa, tendência ou estilo em voga. Ela torna-se objeto de ação expressiva, de comunicação de mensagem, de transmissão de significados, não apenas referencial de status, mas forma de arte, forma de comunicação.
Ainda que a grande indústria e manipulações de mercado venham a deturpar esse sentido através da reprodução de modelos em massa, a criação da moda calcada no universo simbólico da rua, associada às diversas maneiras que os indivíduos dela se utilizam para constituir formas de representação, tornam a expressão de moda uma arte corpórea a comunicar valores. O corpo ornamentado com signos de moda pode ser visto, numa analogia às sociedades primitivas, como uma manifestação totêmica onde signos e ícones modernos são articulados na representação de um universo simbólico, o universo onde indivíduos, coletividades e a práxis cotidiana tomam forma e se comunicam.
Segundo Ted Polhemus (1994:7), a alta cultura cedeu lugar à cultura popular e, neste contexto, a rua foi legitimada como um espaço de autenticidade. A sedução da rua se estriba no caminho aberto para lugar nenhum, ela representa um fim em si mesma. Podemos pensar que, conforme as observações do autor, a alta cultura passou a perceber a cultura popular como uma ceara de manifestações culturais e produções estéticas, neste contexto, a autenticidade destas manifestações e a produção estética derivada destas, converteu-se em interesse para a alta cultura. Temos como exemplo, o trabalho de Jean Paul Basquiat, um artista plástico que literalmente vivia nas ruas e tornou-se um ícone entre connossieurs de artes plásticas do mundo inteiro. Neste contexto, a alta cultura muitas vezes apropria-se da cultura popular e vice-versa, num movimento simbiótico de criação de novas vertentes para as artes, a música e a literatura. A cultura metropolitana produz estilos fluidos que adquirirem legitimidade entre instâncias que ditam padrões de roupa: a moda reflete a rua.
Para Roberto da Matta, (1997) a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões..., implica movimento, novidade, ação, em oposição à categoria casa, que remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares, o que subentende harmonia e calma. A vivência da “casa” é radicalmente diversa da vivência da “rua”. Ao contrário da casa, onde os grupos possuem o controle sobre o ambiente em que vivem, com hierarquias conhecidas (como na relação pai-filho), as hierarquias da rua são muitas vezes desconhecidas, despercebidas, remontando um universo de movimento, conflito, disputa, nascimento e morte. Hierarquizações múltiplas e sucessivas tomam espaço, promovendo ordenações e desordenações.
Segundo o autor, o traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais, o que certamente implica maior intimidade e menor distância social. A rua implica falta de controle e afastamento, é o local público, regido por forças impessoais sobre as quais nosso controle é o mínimo. Nela vivem os malandros, marginais, entre outras entidades com quem nunca se tem relações contratuais precisas. Nela habita o novo, o inusitado, o transgressor, o ilimitado, o incontrolável: a vivência urbana contemporânea
Com base no conceito de rua (e suas relações sociais) desenvolvido por Da Matta, numa analogia à sociedade urbana contemporânea, vestir a rua significa, através da expressão de moda, incorporar as ‘entidades’ que constituem a metrópole a vivenciar a experiência urbana através da estética da composição indumentária.
Para além de simples vestimenta, o sistema da moda serve à função de expressão e representação das relações sociais entre indivíduos, culturas, políticas, manifestações que tomam a urbe como o espaço da experiência. Desta forma, o estilo de roupa passa a representar hierarquias, relações de poder, status, posições assumidas e partilhadas nos territórios reais, virtuais e imaginários da rua.
Diferentemente das sociedades primitivas, onde o coletivo sobressai ao individual e as relações sociais se realizam dentro de estruturas mais lineares, fixas e homogêneas, nas sociedades complexas, as atuais sociedades urbanas, o indivíduo (o átomo social) é mais importante que a sociedade (o todo). Uma marca da individualização, da personalização, da demarcação de territórios e limites é a diferenciação representada pelo código de signos representados pela composição indumentária, a composição de um estilo. O indivíduo se autonomiza na massa e ao mesmo tempo a incorpora pela representação que faz de si mesmo, pela dramatização proposta pela forma de vestir-se, de compor um estilo, de comunicar valores sociais ou aspectos subjetivos que deseja expressar para o outro.
De acordo com Jean Baudrillard, na obra O Sistema dos Objetos, é através da personalização que as pessoas se definem em relação a seus objetos, estes constituem uma gama de critérios distintivos, mais ou menos arbitrariamente catalogados em uma gama de personalidades estereotipadas (Baudrillard, 1998). É este artifício de distinção que encontramos na produção e consumo de estilos de moda.
Tal artifício de distinção está presente na moda como imagem criada sobre o corpo, para Stuart Ewen, na obra All consuming Images; The Politics of Style in Comtemporary Culture (1990), o sonho da identidade que projeta no indivíduo uma realidade ambígua a partir da visualização de formas externas coexistentes, encontra no estilo o referencial de um novo significado ou circunstâncias para sua vida. Para o autor, o estilo é ferramenta da construção da personalidade. Assim, signos codificados em peças de vestuário, atuam como novas formas de expressão da subjetividade e identidade do indivíduo. Contudo, segundo Ewen, a construção da personalidade, cuja totalidade subjetiva é superficial e fragmentada, desarticula a realidade vivencial, substituindo-a por uma construção da totalidade almejada. Isto ocorre porque há uma busca pela obtenção de um ideal de beleza e de individualidade através do estilo.
Pensemos que a moda, ao promover a construção de estilos pela composição indumentária, torna o sonho da identidade e da totalidade descritos por Ewen acessíveis através do consumo. Para o autor, a expressão de uma identidade superficial através do estilo atua como forma de salvação do indivíduo da anomia, da segregação, do anonimato. Para tanto, modelos sazonais, que carregam referenciais de significados codificados no vestuário, provêm o indivíduo de uma nova forma de representação do “eu social”.
O estilo deve possuir, na justaposição de significados que determinam seu valor social, o apelo simbólico do sonho de consumo. Tais apelos encontram-se em elementos que venham a propiciar um referencial de status, da algo compartilhado consensualmente em círculos sociais como signo de distinção e que promovem a interação entre indivíduos efetuada pelo consumo da produção simbólica. A moda não é uma constante histórica fundada em raízes antropológicas universais.
Contextualizada no universo de produção e consumo de bens simbólicos na era atual, a forma moda descaracteriza a função utilitária do vestuário função essa, a de proteção do corpo em relação a agentes externos do meio ambiente e a redimensiona, convertendo-a em referencial de status, pode-se entendê-la também como uma forma de representação do indivíduo em relação ao meio social em que vive. A roupa torna-se, portanto, uma expressão, apresentação, comunicação em diversas instâncias, ou maneira de produzir a diferenciação de indivíduos ou grupos assim como a interação entre estes. É precisamente enquanto uma forma de produção simbólica que a moda aproxima-se, não apenas de um corpus para a criação artística, mas de uma forma de comunicação .
Desde a modernidade, a moda se aproxima das artes, dos esportes, do entretenimento, da tecnologia; contudo, é na pós-modernidade que ela se torna eXtrema: a incorporação desordenada de eventos, valores, entre tantas searas que compõem o mosaico da vida urbana pós-moderna e a reprodução estilizada destes sob o signo da mudança. A moda como entidade fluida a incorporar e ser incorporada nos apresenta e nos representa na vitrine da rua.
Essa moda que incorpora em estética e sentido o momento presente realiza o que Daniel Boorstin em The Image (1962), em sua análise sobre o poder da imagem sobre a sociedade Norte-Americana, define como nossas expectativas extravagantes ¾ queremos pertencer a um todo e ao mesmo tempo nos diferenciarmos de todo mundo através da imagem que produzimos e que nos é apresentada ¾ esta a grande chave da moda: queremos vestir o que todo mundo usa no momento, ‘estar na moda’, ao mesmo tempo em que não queremos nos vestir como ‘o coletivo’, queremos ser únicos, especiais. A relação paradoxal que constitui o interesse é um chamariz de consumo.
Tal qual uma vitrine do ethos urbano, a moda nos devolve a imagem da vida pós-moderna: o conluio em torno dos valores coletivos e a diversidade permanentemente transitória, fluida, que nos escapa e nos gera a sensação de obsolescência, de que não alcançamos o presente, embora estejamos impulsionados para o futuro. Sobretudo, nada nos apresenta com tanta força a imagem desta vitrine como a mídia e hoje, moda e mídia são um par constante. E no caminho entre moda e mídia, a figura do designer confunde-se com a imagem de um artista moderno, de um técnico especializado, de um profissional eclético, de um grande empresário, ou simplesmente, uma personalidade da mídia.
No universo da moda eXtrema, tal qual a Pop Art analisada por Baudrillard, a moda apresenta-se como manipulação de signos, orientando a dinâmica de consumo da produção simbólica. Ao atribuir a peças do vestuário, o aspecto de “mundo objeto” (1995: 120), enseja que a composição indumentária assuma no universo de consumo fashion, um sentido kitsch, de pseudo-objeto, de simulação, de cópia, de objeto fictício ou estereótipo. Por essa razão, ocorre por vezes, a pobreza de significação real e sobreabundância de signos, que exalta o pormenor e satura o contexto de minúcias. (Baudrillard, 1995:115)
A inutilidade funcional de tal contexto evoca também o gadget
[4]: cuja prática que dele se tem não é de tipo utilitário nem do tipo simbólico, mas lúdico, pois estas peças assumem apenas o estatuto de simulacros, na simulação de uma realidade cotidiana urbana, que assim como a Pop Art na visão de Baudrillard, “caracteriza-se como ideologia de uma sociedade integrada, sociedade atual-natureza-sociedade ideal” (Baudrillard, 1995:123), agindo como elemento de conluio, ao mesmo tempo que fundando-se no banal, reinstaura o processo sagrado da arte: aniquilando seu objetivo funcional fundamental ao passo que sua verdade não está em servir para nada, mas em significar.
Seguindo a lógica do consumo, a moda eXtrema também se torna a Pop Art da ornamentação do corpo, a exemplo da decoração, com a finalidade de produção de ambiência, ela representa a imagem construída a partir do corpo. Analisada enquanto arte pós-moderna da ornamentação do corpo, a moda integra o gadget e o kitsch
[5] num composto de apropriação, rearticulação e multiplicação de signos resgatando a exiguidade de valores distintivos que se originam na multiplicação de signos e objetos kitsch.
Ela é redimensionada pela agregação de sentidos múltiplos e se transforma, tal qual a Pop Art, em representação da vida na pós-modernidade. Podemos associar esse valor temático concebido por variantes estéticas de forma e estilo que é “corporificado” na expressão de moda, ao valor, espécie de abertura visada pela arte contemporânea de que nos fala Umberto Eco (1997:92), um valor que não se identifica, teoricamente, com o valor estético, pois se trata de um projeto comunicacional, que deve incorporar-se numa forma bem sucedida e eficaz; e que somente se realiza se amparado por aquela abertura fundamental própria de toda forma artística bem sucedida. Abertura esta, que poderia ser definida como acrescimento e multiplicação da mensagem.
É nesse contexto que a expressão de moda eXtrema, agregando à composição indumentária valores de ação comunicativa, forma de comunicação recodificada, de “folclores urbanos”, de uma cultura de rua, de representação de coletividades, poética cosmopolitana pós-moderna que usa o corpo como a dramatização de subjetividades e que é caracterizada como estilo, torna a moda obra de arte, obra aberta, a lhe serem atribuídos novos valores, significados, referências de acordo com o consumidor que dela faz uso como signo utilitário.
E mais. Ela também é o oposto da arte, é também o lugar comum, é a produção serial, é pura edição a partir de um modelo, transita entre o único e o medíocre, entre o anonimato e o hype, conforme a orquestração de imagens que a sociedade produz e reproduz de si mesma, num sentido desordenadamente xamanístico, a incorporar, agregar ¾ avatar, entidade... Moda eXtrema.

Dos Estatutos da Moda na Contemporaneidade

Abordando-se o fenômeno moda em sua complexidade na urbe contemporânea, faz-se necessário uma breve contextualização dos estatutos e significações a ele atribuídos e que podem melhor dimensionar o que constitui a moda hoje.
Observando a história da indumentária, percebemos que o estatuto adquirido pela forma moda altera-se conforme as evoluções da sociedade ocidental. O século XIV marca o surgimento da moda como produção pós-artesanal, até a metade do século XX, temos a moda como elemento substancial da definição de classes, categorias sociais, a moda pós-guerra da segunda metade do século XX tem a contestação como padrão, caminhando paralelamente ao desenvolvimento de culturas de estilo na sociedade de consumo. Todavia, no presente artigo contextualizamos o objeto de pesquisa no desenvolvimento da sociedade pós-industrial.
O fenômeno moda passa, necessariamente, por uma dimensão temporal, como quando se diz: “o silicone está na moda”, sugere-se que uma determinada prática é tomada como up to date, nesse caso, nada tem a ver com roupa, mas significa alcançar uma posição imediata no momento presente que é reconhecida consensualmente e passa a ser imitada. Vemos, portanto, que a dimensão sociocultural da moda acaba por produzir uma aliança entre a produção material de bens e o consumo simbólico da dimensão temporal, imediata que esses bens ou práticas adquirem. “A última moda” refere-se ao uso, a prática ou o consumo de algo que é constituído por uma dimensão simbólica de presente imediato, esse o seu valor máximo, significar o alcance do imediatamente novo ¾ esse seu capital cultural (termo que, conforme vemos em Pierre Bourdieu, significa o valor acumulado que possui em termos de cultura), que, no caso da produção de bens materiais, converte-se em capital financeiro.
Sendo esse capital cultural concebido sob a égide do imediatamente novo, o valor da moda entendida como produção de bens materiais situa-se inegavelmente no campo do efêmero. Nesse caso, ele se insere no contexto do valor atribuído por diferenciação e oposição ¾ a moda nas saias deste verão as diferencia da moda das saias do verão passado ¾ é a partir dessa diferenciação com o passado imediatamente anterior que seu valor é constituído. Todavia, essa diferenciação no universo do valor de moda atribuído, não se refere ao passado mais distante, do qual signos e significados podem ser usados na moda presente, assim sendo, como retrô, ou uma revisitação às antigas modas.
Como exemplo, atualmente, modas dos anos anteriores, como as camisas xadrez do grunge (grupo de estilo originado em Seattle, nos EUA) dos anos 1990 estão ‘fora de moda’, ou seja, seu valor de uso para o sistema da moda é nulo. Contudo, as mini-saias e o estilo gótico dos anos 80, assim como referências em cintos de metal e visual punk estão em moda, foram incorporados ao contexto da produção de bens que significam o imediatamente presente, a última novidade, embora tenham entrado em desuso em anos anteriores.
Portanto, os bens com valores atribuídos de moda, não tem significação material, o que pode ser analisado conforme o pensamento de Baudrillard em Para uma crítica da economia política do signo (1995), esse objeto de consumo só ganha sentido na diferença com os outros objetos, segundo um código de significações hierarquizadas. Assim, a moda como valor é consumida através das significações atribuídas aos eventos e aos objetos, a despeito de seu valor funcional ou até mesmo estético.
É a partir dessa estrutura de significações, em termos de moda como produção material, que a forma moda como cultura traz à voga significados traduzidos em estética que marcam o momento absolutamente presente. Não ao acaso, a produção de bens com expressão de moda, traz em seu bojo representações de eventos, ideologias e lógicas que marcam o momento presente. Ao agregar significados do novo momentâneo, a moda em produção material, em seu melhor exemplo, na produção do traje, representa de várias formas, em diversas variantes estéticas, elementos do inconsciente social
[6] das tensões, dos prazeres e dos conflitos do presente imediato.
Assim, podemos observar que o fenômeno moda esteve presente na emergência das vanguardas artísticas do início do séc. XX — como no surrealismo — a intercambiar significados e significantes com a arte. Paralelamente, também foi elemento chave no desenvolvimento da sociedade de consumo que eclodiu a partir do capitalismo industrial. Ao mesmo tempo em que fazia parte do universo imaginário de Man Ray e acompanhava a evolução da arte contemporânea, estava de braços dados com o poder do capital, a movimentar a então nascente grande indústria e o mercado.
Portanto, não é de hoje que a moda incorpora eventos diametricamente opostos ou conflitantes da sociedade contemporânea, mas nunca, como nos dias de hoje ela foi tão sujeito, produtora e reprodutora destas manifestações. Talvez esteja aí o centro da grande polêmica a seu respeito: ela transita entre os opostos da contemporaneidade, os mistura, recria e é para alguns, muito frívola para ser teorizada e para outros, muito séria para ser lançada na vala comum dos gadgets.
A moda hoje pode ser lida como uma “vitrine do mundo moderno”, onde a realidade contemporânea é a base do conceito de criação, além de converter-se em forma de comunicação, a expressar a forma como indivíduos e coletividades sentem e se manifestam sobre suas formas de vida. Arte/arquitetura/comunicação pára-corpórea. Registro histórico, corpus antropológico, ideológico, também futurista ¾ a moda veste a rua.
Durante a pesquisa desenvolvida, buscamos elucidar a relação entre a cultura urbana contemporânea e as criações dos designers ingleses, pois, curiosamente, são as criações lançadas por estes criadores que criticam a superficialidade do universo da moda que se tornam tendências a movimentar o grande mercado do vestuário e as marcas mais caras e cobiçadas. Percebemos que em grande parte, estes criadores inspiram-se na rua, na cultura urbana e na vivência marginal de grupos de estilos que habitam os grandes centros urbanos.
O universo da moda tornou-se uma dimensão agregadora de significados da sociedade pós-moderna, não mais apenas símbolo de distinção social, busca da beleza, arma de sedução, a moda agrega valores e conteúdos de universos antes estranhos, ou mesmo antagônicos a ela. Na fluidez conceitual que a define (ou indefine), a moda transita e incorpora domínios da arte, arquitetura, teatro, tecnologia, mídia, política e, sobretudo, comunicação. Ela é um fenômeno contemporâneo que, pela própria velocidade dos atuais processos de comunicação, nos escapa à prisão conceitual. Mutante-mutóide, conforme o pensamento de Canevacci, sua ação é a de um elemento de signo desterritorializado a incorporar significados em deslocamento progressivo.
Atacada por todos os lados, a moda e seus simpatizantes são “enxotados” para a periferia das considerações acadêmicas. Ela torna-se, não o oposto à “high culture”, mas pior, “no culture”, ausência, produto desprovido de qualquer essência, autenticidade, alma. Muitos são os estudiosos a defender a low culture, muitos são os que defendem a “música ligeira”, fenômenos de massa, culturas de consumo, mas moda parece algo sempre associado à “despersonalização”, à “não-consciência”, à busca de implementar o exterior para compensar a ausência de conteúdo interior, pastiche aceito e apreciado por mentes fracas. Nosso intuito a partir destas constatações, não é o de necessariamente legitimar o tema, todavia, propõe um exercício intelectual que busca dar voz aos elementos despercebidos que envolvem o universo da moda atual e permitir a reflexão sobre aspectos que redirecionam os caminhos na moda nos dias de hoje.
Na Inglaterra, para conhecer moda não se lê revistas, se vai ao museu. Das roupas que ilustram a história da Grã-Bretanha desde o século XIV no Victoria & Albert Museum, às exposições sobre o Surrealismo e as fronteiras do desejo no Tate Modern, onde a relação entre moda e arte aparece como avant gard entre os surrealistas, moda é latto sensu, strictu sensu e até mesmo quando nonsense, cultura em primeira instância. É nesse universo, rodeados de manifestações culturais que os designers inglesas desenvolvem suas criações.
Transitando pelo pós-moderno e o histórico, designers de moda como Vivienne Westwood recriam a vivência histórica da cultura britânica para se usar sobre a pele. Sua história no mundo da moda é fascinante, de idealizadora e mãe do movimento punk nos anos 70, passando pelo revival do universo dos piratas nos 80 até a reinvenção da moda da corte da monarquia inglesa nos anos 90, a primeira dama do circuito fashion inglês ainda é mãe do darling da moda underwear sado-masoquista inglesa, seu filho John Corré é dono da Agent Provocanteur, o bondage chic mais famoso de Londres.
Alexander McQueen, o bad boy da moda londrina, amado e odiado pelos shows de horrores que promove em seus desfiles, leva os jornalistas dos gritos às lágrimas, mas fato é que, com essa quintessência “artaudiana” , é impossível que alguém se sinta indiferente às suas criações. Acusado de misógino, low class, skinhead, “oik gay culture”, de linguagem cockney, bruto, totalmente subversivo, o trabalho de McQueen é a violência psicológica urbana modelada sobre o corpo.
Embora Westwood atualmente trabalhe conceitualmente sobre a história e McQueen sobre a realidade pós-moderna, ambos têm muito em comum: são outsiders que hoje influenciam todo o universo da moda ¾ ambos derivam de grupos de estilo ¾ atual cultura extrema, ambos são inovadores não comprometidos com tendências de mercado ¾ eles não seguem, mas criam tendência ¾ além de vizinhos: suas lojas na badalada Conduit Street ficam cerca de cinco metros de distância uma da outra.
Embora este trabalho, uma reflexão sobre moda e cultura urbana contemporânea, não desenvolva uma abordagem estética ou técnica sobre a moda, a apreciação das criações e referências à estilística do trabalho dos designers mencionados, serve ao propósito de contextualizar a estética no pensamento conceitual dos criadores que fazem da moda a vitrine da urbe. Cada designer de moda abordado possui a sua maneira peculiar de traduzir na criação da vestimenta, linguagens e processos comunicacionais do universo empírico da rua, essa, a característica fundamental que transforma a moda contemporânea num objeto de conhecimento antropológico, histórico, social e político. A arte está na rua. A rua está na moda. A moda está na arte.

Da moda como Discurso

A relação simbiótica entre a criação de moda e a vivência contemporânea dos fatos, valores e inquietações sociais, faz com que estes acabem sendo refletidos nas coleções dos designers de vanguarda servindo como discursos sobre a realidade vivida no mundo contemporâneo, um discurso estético que reflete em muito, as opiniões dos estilistas e sua forma de protestar, como Alexander Mcqueen no desfile da coleção Highland Rape ¾ o estupro das terras altas (Escócia), uma alusão às ações da Inglaterra na Escócia, sugerindo que este país foi devastado “estuprado” pela Inglaterra. Neste contexto, a moda utiliza-se da estética para comunicar idéias, em discursos que podem estar próximos da arte.
Tal fato pode ser observado no texto da edição de 14 de outubro de 2001 do jornal inglês The Observer, a seção Review mostrava duas fotos de meia página dos designers Giorgio Armani e Jean Paul Gaultier, com os dizeres: “Is the future of art in their hands?” A manchete do jornalista Deyan Sudjic, certamente reflexo do sucesso alcançado pela exibição Radical Fashion no V&A Museum, argumentava que a moda sempre emprestou elementos da arte para sua inspiração, todavia, agora são os designers de moda que dominam as galerias e museus. Segundo Sudjic, a moda é parasitária, depende de outras formas de arte para seu imaginário e identidade e, tem sido tão bem sucedida com isso que começou a substituí-la.
De Claire Wilcox, curadora do evento Radical Fashion a Yohji Yamamoto, um dos expositores, envolvidos com moda declaram que esta não é e não tenta ser arte. Na verdade, nem precisa, são os críticos de arte que trouxeram a moda para os museus. Os arquitetos e designers da Royal School of Art em Londres, sentem-se indignados pelo termo “fashion designer” ser atribuído aos couturiers, dado que, um designer de “roupa” não pode ser considerado um designer de fato. Irônico é o número de arquitetos e designers que procuram o MA in Fashion Design na Central Saint Martin’s School of Fashion buscando a moda como novo meio de experimentação em arquitetura, ou mesmo, as relações entre a produção de roupa e design de interiores desenvolvidas por Hussein Chalayan, onde uma mesa pode tornar-se uma saia e os revestimento de sofás, tornam-se vestidos.
A moda pode, como ressalta Sudjic em sua matéria para The Observer, unir uma estrela de futebol com um rapper, um artista de teatro, um pintor e um grande diretor de cinema na mesma fileira de assentos de um desfile de moda, além de atrair a atenção de banqueiros, industriais e artistas.O jornalista conclui: A moda tornou-se ao mesmo tempo indústria dominante e força cultural dominante: faz força capital como nenhuma outra indústria e produz cultura como só as grandes vanguardas podem produzir.
É difícil dizer que a moda tomará espaço entre nichos deixados pela arte, ou que o próximo Niemayer fará corselletes de alta costura, mesmo porque, converter moda em arte ou arquitetura não é o objetivo dos designers, mas o ponto que marca a grande diferença da moda dos últimos vinte anos, é o que lhe permite “atravessar” instâncias como a arte, o mercado e a arquitetura: as roupas passaram a comunicar o que vemos e sentimos em relação à vivência na sociedade contemporânea.
É a partir da evolução do evento moda como “forma de comunicação” que ele tornou-se fenômeno contemporâneo, pós-industrial, a agregar valores e significados. Alexander McQueen caracteriza suas criações como “formas de dizer seu pensamento sobre a realidade”, Vivienne Westwood recria em seus vestidos de tafetá, suas abstrações referentes à Revolução Francesa, ou releituras sobre a história do Império Britânico, Hussein Chalayan fala sobre a atrocidade da guerra sobres as famílias e suas vidas através de suas criações roupa-mobília.
Todos esses designers de moda têm suas coleções nas manchetes de jornal entre: as alusões de filósofos, as interpretações de literatos, as prospecções de economistas, as manchetes de esporte, a seção de fofocas, o suplemento feminino e os anúncios de página inteira. Circulando pela alta cultura, pelo grande mercado, pela vida de celebridades, pelo universo feminino (e hoje também o masculino) e pela cultura marginal, a entidade moda “encarna” aspectos dos mais importantes e antagônicos setores da vida urbana moderna.
É a partir da composição indumentária como discurso que a moda assume novos atributos nos últimos vinte anos. Não que as roupas não possuíssem linguagem, forma de comunicar características dos usuários anteriormente, como vemos nas obras de Roland Barthes – O Sistema da Moda e de Allison Lurie – A linguagem das Roupas, mas, neste artigo nosso foco é uma reflexão sobre uma nova ceara da moda gerada a partir das últimas décadas, onde roupas produzidas pelos designers aqui abordados deixaram de ser objeto das relações humanas a comunicar status, classe e gênero e passaram a comunicar (pelas criações dos novos designers), enquanto corpus material a incorporar valores imateriais, visões de mundo, ideologias, conflitos e toda uma gama de realidades imateriais da vivência urbana contemporânea que assumem a forma moda e suas possibilidades de “discurso vestido sobre a pele”, para comunicar dimensões alheias ao universo fashion.
Nesse contexto, os discursos que incorporam a entidade moda, podem ser discursos baseados na sensorialidade: a arquitetar formas de uma realidade estilizada na roupa — como nas criações de McQueen, onde a roupa propõe um diálogo com o corpo sobre uma realidade vista sob a ótica do bizarro, da violência corporal e psicológica, do sofrimento feminino e da beleza sublime, desta forma, a aproximar-se conceitualmente da “arte como discurso”. Ou então, discursos orientados pela racionalidade: com pressupostos ideológicos a comunicar um pensamento racional, onde a roupa comunica uma visão intelectualizada sobre a realidade — como Hussein Chalayan, que se auto-define como um “homem de idéias”, criando roupas que falam sobre a realidade que o rodeia. Muitos destes discursos, podem ser orientados pela sensorialidade e a racionalidade ao mesmo tempo, como nas propagandas da grife Benneton, onde o fotógrafo Toscani nos choca em suas imagens com um discurso sensível, mas muito racional, pois que baseado em questões de alteridade e preconceito.
O trabalho de Chalayan integra obras do aclamado Tate Modern Museum em Londres, como seu vídeo e exibição Living Room Show, parte da seção Century City, onde modelos se vestem com a mobília arrumada no palco, então uma mesa é transformada em uma saia, a capa de um sofá torna-se um vestido. Todavia, para além da aliança entre design de moda e arquitetura, Chalayan explica que a criação fala sobre temas relacionados ao asilo – alguém tendo que deixar sua casa instantaneamente e levando consigo o que puder – como em situações de guerra. Sua fascinação está no corpo e na narrativa cultural através das roupas. Ele é “cerebral onde McQueen é teatral, austero e arquitetural onde McQueen é sexy” (Wilcox, 2000), enquanto um fashion designer intelectual, Chalayan lê filosofia e história e suas criações “falam” sobre religião, opressão e isolamento — uma reflexão intelectual que se aproxima da filosofia como discurso.
Quando McQueen vestiu Aimee Mullins, a ex-atleta cujas pernas foram amputadas, com uma armadura de couro medieval e pernas esculpidas em madeira, para além de instalação viva, arquitetura híbrida do corpo, imagem cruel de rara beleza, o designer nos falava através da forma moda sobre realidades que fazem parte da vivência humana e que habitam um universo oposto ao universo da moda: enquanto a forma moda busca a fantasia da beauté, da perfeição das formas do corpo, da sedução e da frivolidade, a imagem de Aimee nos falava da perda, da dor, da mutilação, da conquista e da possibilidade. O universo da beleza e perfeição era então usado para falar da deficiência, do horror, da hibridização, do grotesco aspecto da vida que a lógica da moda ignora.
É esta a grande diferença da moda dos últimos vinte anos: ela não é apenas temática: uma coleção não apenas possui o tema safári, ou aviação, ou oriente, ela é hoje analítica, reflexiva, contestadora e auto-contestadora, espaço para discussão da vivência da rua, ela não copia a realidade, mas se comunica, discute, vive e a rearticula. Tal qual a antropologia pós-moderna ou reflexiva — que produz uma discussão sobre si mesma, a moda da era pós-industrial é auto-crítica, auto-reflexiva, aberta ao pensar e ao sentir e seu corpus é comunicação desta vivência sensorial e intelectual.

CONCLUSÃO

Em face da inexistência de conceitos que definam a moda produzida a partir dos anos 80, e, em especial nos anos 90, cujo caráter experimental e aproximações da arte e arquitetura por um lado e, ruptura para com paradigmas do sistema da moda de outro, desenvolvemos uma nomenclatura para categorizar e delimitar o objeto de estudo, diferenciando-o das demais expressões de moda existentes na grande indústria do vestuário. Concebemos como Moda eXtrema a forma moda em sua dimensão cultural que data das últimas duas décadas do século XX. Conceito gerado a partir da idéia de juventude e sociedade eXtremas de Massimo Canevacci (que foi orientador desta pesquisa na Universitá La Sapienza): conceito disjuntivo, descentralizado, destinado à “não-síntese”. Ele é definitivamente, um fenômeno social na pós-modernidade, que se desloca acompanhando progressivamente a evolução da sociedade contemporânea, por essa razão, é fluido, modifica-se constantemente ao incorporar valores, significados, atribuições que o reformulam constantemente, de forma que as associações ao termo moda dentro da literatura especializada sobre o assunto, são diversas e nem sempre aprofundadas.
Acreditamos que o termo moda, amplamente estudado nesta tese, e visivelmente ainda pouco explorado no universo acadêmico como conceito, abstração, idéia, é, como parte dos fenômenos culturais da pós-modernidade, um conceito líquido, mutante, mutóide, híbrido, indefinido, desterritorializado, in between. Ele pode ser associado a democracia e modernidade, como em Lipovetsky, ao mercado como em Corrêa, ao simulacro ¾ relações entre objetos representando relações entre pessoas — de Baudrillard, ou à cultura sterminada, como em Canevacci.
Percebemos que a moda a partir das últimas duas décadas, tem adquirido novos estatutos, dimensões outras que a constituem como uma vitrine da sociedade urbana contemporânea. Não porque a moda mostra o que as pessoas vestem nas ruas das cidades, ou porque ela ‘copia’ os movimentos juvenis, mas porque ela tornou-se uma forma de discurso que se aproxima da arte e da filosofia numa relação simbiótica com estes movimentos.
Geramos esta forma de definição de moda, após os quatro anos de pesquisa no doutorado, dado que nenhuma das definições de moda encontradas em investigações teóricas nos pareceu convincente. Certamente foi uma escolha arriscada, pois seria mais fácil tomarmos as definições já desenvolvidas por Lipovetsky ou Baudrillard, mas foi na busca de realização de um trabalho de reflexão, do questionamento dos paradigmas já desenvolvidos sobre moda, que desenvolvemos as definições e conceitos aqui expostos.
Vestir a rua, idéia-título deste trabalho, é a representação simbólica da relação entre a forma moda de vanguarda atual e a sociedade urbana contemporânea, heterogênea, pós-moderna. O jogo das palavras sugere:
Que a moda enquanto produção que se aproxima da arte e da filosofia, ‘se veste’, incorpora os valores, os significados, os eventos e os fatos mais importantes que ocorrem na moderna sociedade ocidental, tal qual uma ‘entidade’ a incorporar aleatoriamente elementos determinantes da cultura contemporânea. Essa moda, produzida pelos novos fashion designers, ao incorporar, ‘vestir-se’ destes significados, apresenta em sua composição estética, discursos sobre a realidade vivida na desordenada e inconstante urbe ocidental.
Que a moda eXtrema em seu capital cultural nos ‘veste’, (nós, os indivíduos habitantes da urbe pós-moderna) nos traz o universo simbólico da cultura da rua, da metrópole, da cultura urbana fluida, deste mosaico de valores que são traduzidos em estética na roupa como forma de comunicação de discursos ideológicos, filosóficos, próximos da arte que são produzidos pelos fashion designers da atual moda eXtrema.
É importante expor que quando falamos desta moda, nos remetemos à moda criada por costureiros da vanguarda, principalmente inglesa, que se utilizam da estética da roupa para discursar sobre realidades e abstrações sobre estas realidades da vida na sociedade atual.
O objeto em questão não é necessariamente a moda elegante de Chanel ou a classe de Prada, nem mesmo é o produto final da grande indústria da moda, mas a composição estética da roupa que atua como discurso, como comunicação de idéias formuladas por jovens criadores de vanguarda que, na verdade, nos falam de dimensões da vida contemporânea que outrora foram desprezadas pelo sistema da grande indústria da moda. Este objeto de estudo está num produto que é fruto de uma verdadeira inversão de valores no universo da moda, onde a roupa torna-se o corpo de mensagens de crítica e até mesmo auto-crítica, como vemos nas peças de Alexander McQueen e Hussein Chalayan, um produto da fragmentação de ideais que acompanha a moderna sociedade ‘fluida’, que questiona a própria noção de beleza e busca a beleza ideológica do bizarro para subverter a ordem da elegância típica da Alta Costura e da grande indústria das confecções.
Enquanto para muitos as roupas rasgadas são subversão, para a moda eXtrema isso apenas promove o espetáculo da pseudo-transgressão, uma pseudo-ruptura onde a transgressão dos movimentos juvenis fora cooptada pela grande indústria da moda. A verdadeira crítica para estes novos criadores, é questionar os próprios padrões de beleza da indústria da moda, colocando, a exemplo de Alexander McQueen, uma mulher obesa nua como estrela de seu desfile em Paris, ou usar como modelos, deficientes físicos que expõem suas deficiências ao público.
Observamos períodos sócio-histórico que ‘moldaram’ a moda conforme o desenvolvimento das sociedades urbanas ocidentais. A moda na modernidade assimilou todas as grandes mudanças, invenções e inovações no seio da moderna urbe. Ela se constituiu a partir de inovações na ciência e tecnologia e mudanças no ethos das metrópoles. No início do século XX ela expressou tanto em seus meios de produção, quanto na estética das roupas, as novas posições assumidas pelas mulheres, sua inserção no mercado de trabalho mudou a imagem da mulher em moda e, mesmo os protestos das feministas emergentes contra a indústria da moda a colocou novamente sob a luz das revoluções históricas.
A moda eXtrema que se veste de rua ao metaforicamente incorporar xamanísticamente as dores, os conflitos, os prazeres mundanos e a vivência do Outro, dos excluídos que vivem à margem do universo da beleza e do glamour da moda, ao mesmo tempo nos veste com as dimensões simbólicas que representam essa rua, nos veste de volta com o capital simbólico e o conteúdo comunicacional das criações conceituais dos designers de vanguarda, nos veste com a cultura urbana da metrópole, com suas contradições e relações paradoxais.
Assim, podemos ‘ler’ no discurso desta moda e seus desdobramentos a nossa própria história social e a cultura formada nos dias de hoje, quando, novamente uma nova forma de se fazer, pensar e criar moda nos expõe a realidade vivida na urbe pós-moderna. A moda eXtrema, aqui tomada como objeto de reflexão, é esse discurso estético permeado de contradições e pleno de conteúdo simbólico vestido no corpo, é um desenho da vida pós-moderna onde vemos o que somos e não apenas, como na moda clássica plena de glamour, vemos o que queremos ser. Vemos o Outro, para podermos enxergar a nós mesmos.








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[1] Vestindo a Rua: Moda, Comunicação & Metrópole

[2] ambos designers que cursaram a Central Saint Martin’s School of Fashion and Design, literalmente, uma escola de vanguarda da moda
[3] Conceito será explanado adiante no texto.
[4] objetos de consumo definidor por Baudrillard como inutilidades funcionais, são menos confeccionados por uma função a ser desenvolvida e mais para nossa contemplação obssessional, como um descascador de ovos movido à luz do Sol. Baudrillard (1997: 121)
[5] Segundo Abraham Moles, é a mercadoria ordinária, um estilo marcado pela ausência de estilo, a uma função de conforto acrescentada às funções tradicionais, ao supérfluo do progresso. Moles, (1986:10)
[6] segundo Erich Fromm: a parte específica da experiência dos seres humanos que a sociedade repressiva não permite que chega à consciência dos mesmos