DECIFRANDO OS CODIGOS DA VIDA E DO CONSUMO NA REDE
A Rede são Pessoas
No ano de 1996, quando a internet começou
a ficar disponível para alunos da UNICAMP (não para todos e era proibido trocar
emails ‘particulares’ que nnao remetecem aos conteúdos científicos), comecei a
pesquisar, no Departamento de Multimeios da universidade, as relações entre
aquela possibilidade quase ‘Asimoviana’
de integração da aldeia global
- a internet – e as possibilidades e mudanças que engendraria na vida das
pessoas. Eu e os outros pesquisadores com foco nesta área éramos os
‘outsiders’, por pensar uma associação que, para os acadêmicos da época, não
teria tanta influência no comportamento humano real, porque era muito distante
do que as pessoas viviam cotidianamente. Hoje, depois de 17 anos de
desenvolvimento desta pesquisa que nunca terminou, mas se ramificou em
diferentes segmentos, em pesquisas teóricas e empíricas na análise do caminho
dessa tecnologia que penetrou na veia orgânica da vida humana real, vejo como
tecnologia web/comportamento/mercado se engendraram de forma a moldar estruturas
da vida contemporânea tal qual outras tecnologias fizeram outrora, (desde a
eletricidade, o rádio, o telefone, passando pela TV) mas diferindo em relação
aos outros desenvolvimento tecnológicos pela forma como a concepção de realidade
vivencial prática, emocional e aspiracional das pessoas se alterou a partir
dela.
Podemos pensar que a TV trouxe uma nova
construção de mitos e ritos, tornando o mundo das estrelas de Hollywood um
universo aspiracional que moldou comportamentos desde a invenção do cinema
mudo. Cinema e TV passaram, por meio dos seus mitos (estrelas e todo lifestyle
destas) a influenciar comportamentos (ritos), padrões de consumo e se tornaram
par constante do mercado, sendo cooptados por este como ferramenta. Mesmo nos dias
atuais, os reality shows tornam a TV cada vez mais um elemento que invade a
intimidade e ‘participa’ da vida das pessoas por meio daquele gadget
tecnológico fincado no meio da sala ou do quarto. Mas a diferença é que se a TV
se pauta em mitos, a internet se pauta em PESSOAS REAIS. Somos eu e você,
nossos amigos, parentes, o bar onde vamos e os mitos, a TV, Hollywood, Big
Brother, o mercado, as ações, o MBA online, o pet shop que transmite a tosa do
meu cachorro, a compra do meu livro importado e da minha casa, a necessidade de
colocar meu perfil e meu negócio online para que possamos ‘existir’ e tudo mais
que faz parte da vida ‘real’ DAS PESSOAS, numa rede invisível aos olhos mas
acessível ao toque de um dedo.
E não há escolha. Com a internet não é
como com as outras tecnologias - não dá pra desligar a TV, não dá pra cortar a
linha do telefone, não dá pra apagar a luz e fazer de conta que não está lá e
dizer: “eu não brinco mais”. Excluir a vida online é excluir-se da vida real –
offline. E no bojo desta tecnologia que tal qual o fogo, a energia elétrica e
as telecomunicações, adquiriu o poder de moldar uma civilização, vem as novas
formas de viver e formar o que entendemos por realidade.
Ouço o tempo todo que a internet é a
grande ‘revolução’. Para mim, como uma pesquisadora do comportamento humano em
matrizes culturais, revolução tem a ver com ruptura, o que não ocorreu na
inserção da internet na vivência social. Ela constitui muito mais um processo
‘evolucionário do que revolucionário’, pois é conseqüência do desenvolvimento
tecnológico e aceleração dos processos de comunicação que já vinham ocorrendo
desde o século XIX, com a descoberta da eletricidade, criação do telefone, do
cinema e orientação do mundo rumo `a idéia de modernidade e futuro em contraposição
`as eras de tradição e adoção voluntária de padrões arcaicos (a exemplo dos
1000 anos de Idade Media na Europa). A tecnologia sempre foi esse ‘braço da
relação humana com o mundo’ desde o homem das cavernas, que conforme MacLuhan,
‘altera a realidade do homem com o meio’. No século XX esse braço adquiriu um
ferramental poderoso que intensificou a velocidade da mudança e suscitou
processos de adaptação relativamente mais descontrolados, que demandam cada vez
mais uma necessidade de adaptação ‘turbo’, o que faz com que o processo de
cognição não passe pela consciência sobre o que, como e porque se está fazendo,
mas uma voracidade por incorporar o futuro sem ter os pés no presente. O
processo de adaptação cultural `a estrutura randômica da web é fascinante, pois
remete praticamente `a antropologia biológica, do adaptar para sobreviver –
como exemplo, temos o problema da inclusão/exclusão digital, que está fora do
digital também está fora do real – neste ponto a dimensão evolucionária da web
se diferencia, pois em termos de outras tecnologias, você poderia optar por ter
ou não uma televisão ou um telefone há décadas atrás, mas hoje, não é uma opção
se isentar do mundo digital, pois isso acarreta a exclusão de dimensões
essenciais da vida real.
A MIRAGEM DIGITAL – Percepção, Experiência, Vivência e Consumo na Rede
Durante pesquisas realizadas pelo Núcleo
Xamã, (empresa de Ciência Aplicada ao Mercado, qual sou diretora científica),
sobre juventude e vida digital, ficou claro o processo que tornou a web um cenário
do imaginário e do aspiracional humano projetado nas redes sociais e em todos
os pontos de contato entre as pessoas por meio da tecnologia digital. Mas isso
não foi o ponto principal. As redes sociais são hoje os arcabouços projecionais
mais perfeitos, as pessoas constituem seus avatares, não com mentiras, mas com
elementos de aspiração e de percepção de si que mais agradam e os quais
gostariam que constituísse a percepção dos outros sobre si. Durante as
pesquisas, os discursos iniciais dos entrevistados sempre giravam em torno do
‘eu sou o que eu compartilho, mas os outros não’, curiosamente, uma percepção de
transparência para si e de inverdade para o outro, dizendo, “na rede coloco o
que sou, são as coisas que eu gosto, o que eu faço. Mas os outros, ah... os
outros colocam coisas pra ficar bem na fita (sic), tipo Ilha da Fantasia, mas
ninguém é assim, gosta de tudo isso ou tem essas experiências (ou só estas) no
cotidiano”. Conforme trabalhávamos num nível mais profundo, o discurso sobre si
mudava quando encontrávamos os ‘porquês’ que geravam os ‘o quês’ das formas de apresentação
e expressão ‘online’ dos entrevistados. O processo de pesquisa que usamos,
unindo antropologia, ciência da comunicação (anealise sociocultural do
discurso), sociologia e psicologia, tinho como propósito chegar ao ponto
‘invisível’ dos valores que geram motivações, buscando ‘quebrar os códigos de
valores” referentes `a vida e comportamento digital, decifrando-os para
trabalhar produtos, inovação e planejamento estratégico para a marca cliente.
Analisando sob um ponto de vista científico
a vida digital, podemos inferir que é de grande ingenuidade, para não dizer
outra coisa, acreditar que as pessoas são aquilo que compartilham - não que as
pessoas mintam, ou aquilo não seja parte delas – mas este SER é mais complexo
do que um mero discurso de exposição de gosto. Um jovem pode compartilhar seu
interesse pelo Festival Coachella e isso não é mentira, mas existem inúmeros
gradientes entre o branco e o preto de cada discurso e as razões e formas de
exposição deste ‘gosto’, que um mesmo ‘like’ em Coachella pode significar
coisas completamente diferentes dentro do contexto de diferentes jovens da
mesma idade, classe social e da mesma região, mas com lifestyle, repertório
cultural e valores familiares diferentes no ‘real offline’. Os discursos da
vida online, não apenas o que é escrito, mas todas as formas de comunicação e
comportamento na rede digital são, tal qual os discursos e comportamentos da
vida offline, complexos, gerados por motivações profundas e não-obvias e
permeados por uma série de valores que orientam escolhas, ações e tudo o que é
exposto online.
Encontram-se ali, na rede digital, no
cyberespaco, os elementos essenciais dos processos relacionais humanos, como as
buscas por controle, as manipulações, as estratégias de construção da imagem
pública, as tentativas de expor uma profundidade mais ‘bela aos olhos do que
verdadeira’, as relações de poder dentro do jogo social, as formas de exposição
controladas, ‘customizadas’ de acordo com interesses e objetivos finais em
relação a outrem, a busca por integração e também a busca por diferenciação.
O mais óbvio, revela o mais complexo, o
‘like’ numa página de produto pode significar que eu quero que meus amigos
saibam que eu gosto daquele produto, mas eu nunca vou comprá-lo de verdade,
faço isso por estratégia de integração social por meio da construção da minha
imagem pública na rede. Ou pode significar que estou buscando conhecer coisas
novas e mudar meu lifestyle, se analisado o contexto do engajamento com outras
marcas online que representam outros lifestyles consoantes ou dissonantes e
junto a isso se mapear o código de valores deste ‘internauta’ conforme a
análise antropológica do seu discurso. Assim como uma parada na vitrine de uma
loja, que a ‘olho nu pode representar, esta roupa me chamou atenção, gostei,
pode significar: ‘essa moda é ridícula’, ‘olha a roupa que minha rival no
escritório usa, nunca vou usar algo assim, pois quero me diferenciar’, ‘vou
copiar, mas comprar num lugar mais barato’, ‘é isso que estão usando? Não acho
que ficaria bem em mim’... e mais uma série de possibilidades que em termos de
mercado, precisam ser investigadas para a construção de estratégias de
marketing.
GERAÇÃO CABEÇA-BAIXA E A REALIDADE INTERSECCIONAL
Fato é que, em não havendo escolha em
termos de ‘não integrar-se `a vida digital’ (desde o sistema bancário de emite
holerits, até a escolha do medico no seu plano de saúde, é agora feito
exclusivamente pela internet, o que significa que quem não está na rede se
encontra excluído de dimensões sociais essenciais na vida de qualquer um), as
formas de relacionar-se com esta tecnologia e com as pessoas, que são em última
instancia, a rede, são inúmeras, tal qual as relações na vida real.
Mas uma delas é comum a praticamente todos
os jovens, que mesmo quando resistem a ela, estão vivendo-a, pois se posicionam
em relação `a mesma – A Vivência da Realidade Interseccional. Num bar, numa
reunião de negócios, nas aulas da faculdade, ou mesmo na intimidade do casal, o
smartphone parece uma extensão do corpo do usuário ao qual ele precisa recorrer
em intervalos controlados de tempo. A sensação de ‘perda’ do momento presente
quando a pessoa nnao se conecta `a rede para ‘saber o que está acontecendo’,
seja checando emails, entrando no Facebook para ver quem comentou seu post ou
quem está online, no Twitter para saber quem está onde fazendo o que, no
Instagram para ver quem está no lugar mais legal, com quem, fotografando o que,
entre muitas outras possibilidades que diferem de acordo com o interesse e
valores do usuário, é a sensação de exclusão, seqüestro da realidade e falta de
controle sobre ela.
Um jovem pode passar a semana planejando
ir a uma festa descolada onde vai encontrar sua paquera e curtir com seus amigos,
mas tão logo ele chega na festa, você o encontra, em diversos momentos – e
entre alguns jovens, na maior parte dos momentos – de cabeça baixa, olhando
para um artefato tecnológico na palma de sua mão que o poupa da sensação de
falta de controle e vivência totalizadora, real, do momento presente. Ele está
no lugar que queria, com as pessoas que queria, curtindo a realidade palpável
que queria, mas, a noção de vivência da REALIDADE, de experienciar momento
presente , apenas se torna fato para ele, quando o real offline e o ‘real
online’ estão ao seu alcance, constituindo o conceito que denomino REALIDADE
INTERSECCIONAL’, uma pára-realidade, constituída a partir das necessidades e
percepções geradas pela era da internet, que constitui o ‘real de fato’ para as
gerações atuais e influenciam gerações anteriores.
A REALIDADE INTERSECCIONAL é como uma nova
forma de estar e vivenciar o mundo, a vida, as pessoas. Ela não é uma escolha,
ela é um sistema que se engendra por um processo. Ela se torna parte da vida das
pessoas sem que elas percebam. Ela é criticada pela maior parte das pessoas,
mas as mesmas não a abandonam, no máximo, tentam controlar seus impulsos de
buscar a totalidade da vivência interseccional acessando a internet para
amenizar a sensação de obsolescência – algo está acontecendo ‘na rede’ e eu
nnao estou sabendo, logo, eu não sou parte disso, eu me sinto excluído, eu
preciso me integrar para que a sensação de falta de controle acabe.
Jean Baudrillard
falava da TV como uma atividade de conluio entre os telespectadores que, ao
assistir ao jornal no horário nobre, se sentiam parte de um todo e vivendo um
processo de integração e experiência do social. A internet, em especial as
redes são este conluio exponencial que se torna vivência essencial na sociedade
contemporânea. Consumimos a rede como consumimos a cultura, a arte, a musica, o
ar, a comida, entendendo o consumo como um processo de fruição por meio do qual
nos relacionamos com as pessoas, nos identificamos, nos diferenciamos e nos
integramos por meio de nossas escolhas de bens tangíveis e intangíveis.
Mas sobretudo, na rede, consumimos aquilo
que nos é mais precioso: a nós mesmos e `a pessoas. Nos tornamos o mais notável
produto exposto em perfis a ser percebido, analisado, escolhido ou não e assim
também nos relacionamos com outrem. Note-se que, como uma cientista do consumo,
não concebo o tema consumo como um acordo frio e mecanicista que trona pessoas
coisas sem humanidade, mas um processo onde coisas são instrumentos de relações
humanas entre pessoas e representam o mais humano e relacional, constituído a
partir de emoções, imaginário valores permeiam estas relações. Consumimos na
redes avatares que se constituem como totens dos valores mais profundos que
constituem a visão de mundo, a perspectiva sobre a realidade e orientam o
comportamento na vida social. A rede são as pessoas `as quais nos conectamos
num sistema de trocas simbólicas, tal qual entre os povos primitivos, num
sistema de signos, significados, mitos, ritos e comportamentos que representam
ordens sociais, cultura e engendram formas de ser e agir no real offline.
Theodor Adorno escreveu que “A Industria
cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores”.
A indústria digital é a nova industria cultural, é o meio como mensagem de
MacLuhan, que integra pela mensagem que não necessita de palavras, do
engajamento pelo código cultural manifesto – não é mais ‘o que se diz’, mas os
diferentes grupos culturais, integrados na web, se definem e diferenciam por
‘como se diz’.
ANTROPOLOGIA DIGITAL – Decifrando Codigos Comportamentais, Criando Estrategias e Inovação
Um dos grandes problemas da vivência
contemporânea, sobretudo para o marketing, é que a fluidez e superficialidade
que vieram o bojo na inovação tecnológica projetaram a estrutura do marketing
digital como um avatar por si só apenas voltado ao futuro como base do presente
sem buscar entender as diferenças e interseções entre o real e o virtual para
alicerçar suas decisões empresariais, com exceção de empresas que investiram no
entendimento do universo digital, dos motivadores que engendram decisões de
consumo e das formas de posicionamento de produto, tal qual Ikea, Apple e no
Brasil a Tecnisa, grande parte das empresas ainda está ‘investindo no escuro’,
tentando acompanhar a velocidade da tecnologia e sua influência no mercado sem
entender o que realmente acontece no real que influencia o digital e vice
versa.
O que o mercado não entendeu é que quem
paga a conta do produto comprado na web, esse cara que assiste um vídeo bizarro
fascinante e fica engajado pela ludicidade da gamificação e do transmedia
storytelling, é uma pessoa real, cuja estrutura mental e emocional básica, está
calcada em valores que determinam visão de mundo, a qual alicerça
comportamentos e lógicas de seleção e que estes valores não mudaram com a
rapidez e fluidez da web, mas estão em processo de cognição, conscientização e
incorporação in progress, razão pela
qual empresas se perguntam “eu investi milhões num super ultra projeto
futurista de marketing digital desenvolvido pela agencia do momento e não houve
engajamento nem conversão do target. Como!?!?!? A resposta: Sua empresa não
entendeu a REALIDADE INTERSECCIONAL.
Pesquisar a REALIDADE INTERSECCIONAL é
entender o sistema em que se constituem estas duas realidades, agora inseparáveis,
interconectadas, a construir uma forma de perceber, enxergar e estar no mundo.
Para o mercado, é preciso entender cada ponto de contato da realidade
interseccional, para se compreender os códigos de valores que estruturam o
olhar sobre marca e produto e o que define os processos de escolha, pois embora
a rede seja o espaço da vivência relacional de exposição, aspiração e
imaginário, são elementos pragmáticos do real, que muitas vezes não são
expostos na vida digital, que influenciam a tomada de decisão, como as
condições econômicas que diferem dos ‘likes’, exposição de gostos, páginas
‘trackeadas’ por web analytics, mas que representam apenas o aspiracional (mas
que se analisadas pela antropologia digital podem ser trabalhadas
estrategicamente para converter aspiração em possibilidade de compra), relações
entre pessoas e com marcas expostas em rede mas que são apenas estratégias de
manipulação do jogo social., enfim, para se entender o comportamento do
consumidor que vive hoje a experiência com marca e produto online, é
necessários entender quais são os motivadores e limitadores do ‘offline’ para
construir qualquer estratégia minimamente eficaz, caso contrario, empresas e
marcas padecerão da mesma ingenuidade dos usuários que acreditam em tudo o que
é compartilhado online, com a diferença do prejuízo de investimentos
milionários e perda de market share. Neste ponto a Antropologia Digital, para
muito alem da técnica (como o hype da cyber etnografia, ou netnografia, que se
não for feita por antropólogo, é como pedir para um chef de cozinha analisar um
processo judicial) é a ciência que dá conta de compreender quem são as pessoas
que vivem a ‘persona virtual’ na intersecção entre a realidade digital e a
realidade offline.
Business Anthropologist , Writer, Lecturer and Co-founder of
Nucleo Xamã (Consumer Science Applied to Business)