domingo, 27 de setembro de 2009

ARQUEOLOGIA DO CONSUMO — Comunicação, Antropologia e Análise da Cultura Material aplicados à decodificação do consumidor



Comunicação e Antropologia - A linguagem construindo a cosmologia

Conseguimos pensar sem linguagem? Dialética e hermenêutica são instâncias culturalmente determinadas, pois a cognição e entendimento das coisas que vemos e assimilamos depende de uma categorização interna que fazemos, de acordo com o repertório cultural de cada indivíduo e de cada grupo.
A linguagem precede o indivíduo e sobrevive a ele. Numa era onde o neo-darwinismo prega que somos todos instrumentos dos genes a viabilizar sua evolução e sobrevivência bem no estilo do filme Matrix, a idéia de reducionismo da existência humana em função dos sistemas em que nos encontramos inseridos — o capitalismo, a religião, a genética — coloca o homem como um fantoche amarrado a teias de processos que determinam suas potencialidades e possibilidades. Se sua genética não é das melhores sua existência estará condenada à mediocridade.
E onde então “categorizamos” o espírito humano? Como sistematizamos essa dimensão que se apropria de sistemas como a linguagem e a transforma num instrumento de transcendência a tornar a existência humana bigger than life? Não será o talento justamente este elemento de articulação e transformação que interagindo e subvertendo sistemas recria e redimensiona a vivência humana ultrapassando a determinante evolução para a humana transformação?
Em minhas pesquisas sobre grupos de estilo e a indústria fonográfica há 13 anos atrás eu investigava a forma como, em meio às determinantes do sistema capitalista e a ordenação sistemática da produção de mercadorias na indústria fonográfica, jovens músicos e produtores “driblavam” o sistema interagindo com ele e o articulando para obtenção dos fins almejados — lançar discos na competitiva e oligopólica indústria fonográfica — Os limites que separam as esferas da contracultura e a sistematização e ordenação capitalista neste meio tornaram-se inconsistentes e indefiníveis. A relação simbiótica* que une estas esferas contraditoriamente é perceptível. Seu centro de forças se encontra na capacidade da criatividade juvenil em interagir e redimensionar as janelas abertas pela evolução da técnica e da racionalidade desenvolvidas pelo avanço da ciência. Estes jovens recriaram formas de lidar com a dominação tecnocrática segundo suas necessidades e objetivos. A mesma tecnologia que oprime pela imposição do domínio técnico especializado e ordenação racional da produção, quando dominada pela juventude, torna-se sua ferramenta na liberdade de criação e uma “arma” na luta pela inserção nos meios de produção na sociedade moderna. A mesma contracultura que luta contra a massificação da produção, quando capacitada pelo domínio sobre as novas tecnologias, produz a alternativa para o consumo voltado às “minorias” juvenis.
O do it yourself é uma representação dessa capacidade humana em inverter as relações de poder em meio aos sistemas em que nos encontramos inseridos e ampliar as possibilidades reduzidas pela ordenação dos sistemas.
E nesse contexto a linguagem que nos precede e sobrevive é apropriada e reconfigurada para servir como suporte para a dimensão da alma, das infinitas e transformadoras possibilidades do espírito humano.
 é pela linguagem das coisas e pessoas que o mundo em que vivemos ganha sentido. É a língua a primeira coisa que um antropólogo deve aprender ao entrar em campo e etnografar um grupo e sua cultura. É pela ordenação dos elementos significantes disposta na língua que podemos apreender o universo simbólico que compreende e estrutura uma cultura.
O sistema da linguagem de uma cultura é a estrutura chave por meio da qual podemos decodificar as dimensões de maior representatividade numa etinicidade, nela estão dispostos os sistemas simbólicos onde podemos “ler” como sentem, pensam e se comportam os indivíduos de um grupo.
A associação entre antropologia e comunicação não é nova, George Bateson e posteriormente Yves Winkin trabalharam essa conjunção décadas atrás. Winkin (1998:22) ressalta que o termo comunicação tem raízes no conceito de partilhar, pôr em comum e que num momento posterior passa a significar transmitir, passar de um ao outro, que configura o elemento cibernético do sistema da comunicação — a forma como a linguagem transita levando e disponibilizando conteúdos que compreendem os significados que tornam o mundo e as coisas cognoscíveis para nós.
Podemos então pensar que a linguagem é o elemento de interação entre indivíduos de um grupo, pois é o sistema cibernético onde se compartilha sentidos e que permite que estejam em contato. E por ser um sistema aberto e cibernético movimenta-se assimilando cada vez mais novos códigos e perspectivas e adquirindo novos contornos.
E entendemos que o processo de comunicação não se estrutura apenas na palavra, os animais comunicam-se por sinais corporais. O animal-homem também. E então chegamos à gramática dos gestos e comportamentos que permitem a interação e o compartilhamento de idéias e emoções.
Então temos os códigos, os elementos que estruturam o comportamento do indivíduo no grupo e permitem que sua intencionalidade seja reconhecida dentro de um sistema de regras e princípios que permitem a cognição por partilhar significados em comum.

E temos o antropólogo na relação de alteridade cultural. Esse estranho no ninho a buscar compreender uma cultura por meio dela mesma, tentando despir-se das estruturas que configuram sua cognição de mundo por meio de sua linguagem de origem e buscando apreender o mundo como a criança que aprende a dar nome aos objetos que vê e toca.
Ele observa com todos os sentidos não restringidos pela genética neo-darwinista e tenta ouvir com sua alma. E que estranha poesia é essa cuja música das palavras o convida para dançar num novo mundo de significados os quais ele não compreende, mas busca como a criança que aprende a língua, trazer ao alcance das mãos, dos olhos, do coração.
É a poesia da Cultura-Outra, permeada de mistérios para aquele que não se encontra inserido no sistema da linguagem local, como uma antiga canção celta cujo não-entendimento da língua cantada nos faz adivinhar seu significado pelo encadeamento das emoções transmitidas pelos sons. Ele tenta tocar o significado dessa canção com as pontas dos dedos de sua sensibilidade ao Outro, comunicando-se pelo intangível processo do reducionismo fenomenológico do estar em suspensão de sua relação com o mundo para reaprendê-lo pelos olhos e sentidos desse Outro.


A ARQUEOLOGIA APLICADA AO CONSUMO

Mas este antropólogo não está entre neo-druidas ou no Xingu. Ele está na selva urbana, onde uma miscelânea de grupos que partilham uma mesma linguagem original, a linguagem de uma nação, de uma cidade, constituiu-se como novas identidades institucionalizadas a criar uma linguagem própria, uma gramática de significados e comportamentos compartilhados que os diferenciam e definem no mapa cultural de uma metrópole globalizada.
Ele compartilha a linguagem original com estes grupos, mas é só na apreensão da linguagem que detém os códigos que determinam as estruturas e peculiaridades do grupo que ele encontra a possibilidade de compreender essa Cultura-Outra.
Mas não são apenas os neologismos e slangs que permitem que se apreenda a cosmologia das culturas urbanas. A linguagem silenciosa das estruturas de significados codificadas nos objetos e comportamentos de consumo constitui hoje a mais rica dimensão a ser analisada num processo de imersão cultural para a pesquisa antropológica.
A Antropologia do Consumo surgiu em minha vivência científica não apenas como uma perspectiva de aplicação da antropologia ao mercado, mas como a mais rica perspectiva da antropologia para o estudo das sociedades complexas. Ela permite dar conta de todo um complexo mítico e ritual que é experienciado por meio dos objetos de consumo e que neles condensa sua linguagem, a visão de mundo de uma cultura e como seus indivíduos sentem e se manifestam acerca da existência e da experiência humana num dado espaço, num dado tempo.
O que desenvolvo hoje em minhas pesquisas aplicadas ao mercado é uma espécie de Arqueologia do Consumo, uma análise da cultura material onde é possível compreender a linguagem de diferentes grupos e sua complexidade cultural, a gramática que estrutura seu comportamento e carrega, transmite e sustenta os significados compartilhados nesse universo.
A codificação da visão de mundo compartilhada em objetos e comportamentos de consumo dimensiona a estrutura lingüística que dá sentido à vivência e filosofia do grupo. E são esses códigos envoltos na materialidade e relações de poder da cultura material que uma Arqueologia do Consumo permite que sejam decifrados, ao ponto em que os princípios de aquisição, uso e descarte dos objetos num sistema de produção e reprodução de tendências de consumo possam ser mapeados, assimilados, interpretados, analisados e por fim compreendidos em todas as suas dimensões.

O mau uso da etnografia e da antropologia no mercado deriva da incompreensão, por parte de empresas clientes e empresas de pesquisa, de que a etnografia é apenas uma ferramenta de aquisição de dados, os quais, se não interpretados segundo as teorias antropológicas corretas, nada mais são do que informações sem sentido. Como seria possível compreender os códigos sem a apreensão da linguagem? Como pode um etnógrafo sem o conhecimento científico dos conceitos antropológicos, decifrar os elementos lingüísticos da gramática cultural que estrutura um grupo?
É nesse sentido que a idéia de uma Arqueologia do Consumo que proponho lança mão do estudo da Ciência da Comunicação associado à Antropologia para pesquisar nichos de consumo, grupos de consumidores e suas estruturas comportamentais e lingüísticas a fim de identificar padrões e tendências, mapear sensibilidades emergentes, decodificar tipos e dinâmicas e possibilitar a geração de insights e estratégias para o mercado de bens de consumo.
Conseguimos pensar sem linguagem? Creio que não.

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