terça-feira, 14 de agosto de 2007

Vestindo a Rua: Moda, Comunicação & Metrópole

RESUMO[1] - Palavras-chave: Moda, Comunicação, Cultura Urbana Contemporânea

Este artigo apresenta uma reflexão teórica sobre os significados da criação em moda, seus aspectos simbólicos e ideológicos e a confluência com a cultura urbana contemporânea {rua) nas duas últimas décadas do século XX. O objetivo deste artigo, baseado nas pesquisas da tese de doutorado “Vestindo a Rua, Moda, Cultura & Metrópole” foi elucidar as significações culturais da moda concebida por criadores de vanguarda na atualidade e expor alguns aspectos políticos, estéticos e ideológicos que a compõem e a diferenciam da moda das décadas anteriores. Sobretudo, investigamos a moda como uma forma de comunicação que discursa sobre realidades e abstrações da vivência na sociedade atual. O discurso desta moda é aqui apresentado através da abordagem do trabalho de designers selecionados por sua importância neste universo.

ABSTRACT – Key-words: Fashion, Communication, Contemporary Urban Culture

This work presents a theoretical reflection about the meanings of the creation in fashion in it’s symbolic and ideological aspects and in the confluence with the urban contemporary culture (street) in the two last decades of the XX century. The objective of this article, based on the research for the PhD. Thesis “Dressing the Street: Fashion, Culture & Metropolis was to elucidate the cultural meanings of the fashion conceived for cutting edge designers in the present time and to display some of the politicians, aesthetic and ideological aspects which compose it and differentiate it of the fashion of the previous decades. Above all, we investigate the fashion as a communication form that develops speeches on realities and abstractions of the experience in the current society. The speech of this fashion is presented here through the approach of the work of the designers selected according to their importance in this universe.

INTRODUÇÃO

O fenômeno moda, entendido como um sistema de mudanças sazonais de tendências que acompanham o vestuário (e, atualmente, tantas outras categorias de bens de consumo como carros, celulares e mobiliário) e onde a obsolescência programada de produtos é orientada pela dinâmica de mercado, é aqui abordado em sua confluência com a cultura urbana contemporânea (que aqui, em referência ao trabalho de Roberto da Matta, A Casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. 1997, denominamos rua) e com o advento de comunicar, expressar, representar muito do que são as idéias, os valores e as formas de vida na moderna urbe.
O recorte dado ao tema no presente artigo, concentra-se numa reflexão sobre estatutos socioculturais que definem muito do que constitui o fenômeno moda desde as últimas décadas do século XX até o presente momento, onde percebemos uma relativa inversão de valores, por meio da qual a criação de designers que influenciam o grande mercado do vestuário (sobretudo, os designers da nova vanguarda inglesa), torna-se o corpo de mensagens de crítica e até mesmo autocrítica acerca do universo da moda, como vemos nas criações de Alexander McQueen e Hussein Chalayan
[2] — um produto da fragmentação de ideais que acompanha a moderna sociedade, que questiona a própria noção de beleza e busca a beleza ideológica do bizarro para subverter a ordem da elegância típica da Alta Costura e da grande indústria das confecções.
Este fenômeno teve início, em grande parte, quando os mencionados designers passaram a inspirar-se na vivência de grupos de estilo que habitam as ruas de capitais como Londres, Milão, Paris e São Paulo e trouxeram para suas criações, muitos dos elementos desta cultura vivida literalmente na rua.
Após quatro anos de pesquisa, realizada entre Brasil e Europa, (em Milão e Londres) desenvolvida por meio de um doutorado sanduíche financiado pela Fapesp, elucidamos alguns pontos que são aqui debatidos numa reflexão crítica acerca da moda gerada pelos mencionados criadores de vanguarda, como Hussein Chalayan, Alexander McQueen e Vivvienne Westwood. Estes criadores são designers nascidos na efervescência do universo da moda de Londres, e foram selecionados como objeto de pesquisa pela relação entre suas criações pouco convencionais a partir dos anos 1980 e as manifestações estéticas e culturais da moderna urbe ocidental. Esta escolha restringiu-se à moda européia, sem a menção aos criadores brasileiros, pela influência que os criadores ingleses exerceram no direcionamento de tendências do grande mercado da moda global.
Assim, no reconte dado a este artigo, a moda que conceituamos como eXtrema
[3], constitui a transformação da expressão de moda clássica em seu oposto: a elegância e a distinção sucumbem frente ao belo conceitual do bizarro e da inserção do Outro, da diferença, da alusão aos excluídos num universo outrora regido pelo glamour. Enquanto para muitos as roupas rasgadas e os vestidos transparentes que expõem os seios são subversão, para a moda eXtrema isso apenas promove o espetáculo da pseudo-transgressão. A crítica para estes novos criadores de moda, é apresentada como o questionamento da própria moda como um sistema reprodutor de padrões hegemônicos de estética, de noções pré-estabelecidas do que constitui o belo, em atitudes como a de Alexander McQueen, cuja estrela dos desfiles é Sophie Dahl, uma manequim gorda, e cujo trabalho dá voz aos excluídos como os obesos e os deficientes físicos. McQueen ilumina modelos sem pernas para os olhos de clientes de primeira fila que choram por não terem novos sapatos.
Essa moda eXtrema que ‘veste a rua’, se veste de rua, ao mesmo tempo em que nos veste com dimensões simbólicas que representam essa rua, incorpora, ao seu tempo, a cultura urbana da metrópole, da crise das categorias sociais como sexo, fé, família, da inversão de valores, dos extremos que vão da moderna guerra tecnológica às uniões entre parceiros do mesmo sexo, passando por uma reavaliação dos paradigmas que, conforme o filósofo Gilles Lipovetsky na obra O império do efêmero, estruturam a forma moda: a sedução, o efêmero e as diferenciações marginais.

A Moda e a Rua

Abordando a rua como pólo desterritorializado de convergência de muitos dos valores e idéias vivenciados na sociedade contemporânea, e observando esta rua como o foco inspirador das criações dos designers de vanguarda, tomamos como referência, o conceito de rua definida por Roberto Da Matta (1997:55) como: lugar da individualização, de luta e de malandragem ¾ espaço onde relações de poder se instituem e grupos disputam territórios geográficos ou simbólicos — um espaço geograficamente desterritorializado ocupado por identidades múltiplas que transitam por espaços reais, virtuais e imaginários. O conceito rua, “emprestado” do autor, é aqui analisado em seus atributos tal qual uma metáfora da sociedade urbana contemporânea e, não necessariamente, em sua relação com o conceito de “casa” (as relações familiares, a vida privada), mas sim como um elemento de referência para as relações vivenciadas, as idéias e as inquietações vividas no espaço urbano.
A experiência da rua está no corpo da arte, da música, da WEB. A vivência urbana contemporânea assume novos corpi, e o processo de socialização e comunicação desloca-se progressivamente ao compasso da evolução dos meios de comunicação. A rua deslocou-se para o virtual gerando experiências onde o sensorial e o comunicativo são afetados pela dimensão espacial e temporal da WEB.
A moda contemporânea dos designers de vanguarda ingleses, orientada por referenciais estéticos, comportamentais e de estilo derivados da rua, torna-se mais que roupa, tendência ou estilo em voga. Ela torna-se objeto de ação expressiva, de comunicação de mensagem, de transmissão de significados, não apenas referencial de status, mas forma de arte, forma de comunicação.
Ainda que a grande indústria e manipulações de mercado venham a deturpar esse sentido através da reprodução de modelos em massa, a criação da moda calcada no universo simbólico da rua, associada às diversas maneiras que os indivíduos dela se utilizam para constituir formas de representação, tornam a expressão de moda uma arte corpórea a comunicar valores. O corpo ornamentado com signos de moda pode ser visto, numa analogia às sociedades primitivas, como uma manifestação totêmica onde signos e ícones modernos são articulados na representação de um universo simbólico, o universo onde indivíduos, coletividades e a práxis cotidiana tomam forma e se comunicam.
Segundo Ted Polhemus (1994:7), a alta cultura cedeu lugar à cultura popular e, neste contexto, a rua foi legitimada como um espaço de autenticidade. A sedução da rua se estriba no caminho aberto para lugar nenhum, ela representa um fim em si mesma. Podemos pensar que, conforme as observações do autor, a alta cultura passou a perceber a cultura popular como uma ceara de manifestações culturais e produções estéticas, neste contexto, a autenticidade destas manifestações e a produção estética derivada destas, converteu-se em interesse para a alta cultura. Temos como exemplo, o trabalho de Jean Paul Basquiat, um artista plástico que literalmente vivia nas ruas e tornou-se um ícone entre connossieurs de artes plásticas do mundo inteiro. Neste contexto, a alta cultura muitas vezes apropria-se da cultura popular e vice-versa, num movimento simbiótico de criação de novas vertentes para as artes, a música e a literatura. A cultura metropolitana produz estilos fluidos que adquirirem legitimidade entre instâncias que ditam padrões de roupa: a moda reflete a rua.
Para Roberto da Matta, (1997) a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões..., implica movimento, novidade, ação, em oposição à categoria casa, que remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares, o que subentende harmonia e calma. A vivência da “casa” é radicalmente diversa da vivência da “rua”. Ao contrário da casa, onde os grupos possuem o controle sobre o ambiente em que vivem, com hierarquias conhecidas (como na relação pai-filho), as hierarquias da rua são muitas vezes desconhecidas, despercebidas, remontando um universo de movimento, conflito, disputa, nascimento e morte. Hierarquizações múltiplas e sucessivas tomam espaço, promovendo ordenações e desordenações.
Segundo o autor, o traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais, o que certamente implica maior intimidade e menor distância social. A rua implica falta de controle e afastamento, é o local público, regido por forças impessoais sobre as quais nosso controle é o mínimo. Nela vivem os malandros, marginais, entre outras entidades com quem nunca se tem relações contratuais precisas. Nela habita o novo, o inusitado, o transgressor, o ilimitado, o incontrolável: a vivência urbana contemporânea
Com base no conceito de rua (e suas relações sociais) desenvolvido por Da Matta, numa analogia à sociedade urbana contemporânea, vestir a rua significa, através da expressão de moda, incorporar as ‘entidades’ que constituem a metrópole a vivenciar a experiência urbana através da estética da composição indumentária.
Para além de simples vestimenta, o sistema da moda serve à função de expressão e representação das relações sociais entre indivíduos, culturas, políticas, manifestações que tomam a urbe como o espaço da experiência. Desta forma, o estilo de roupa passa a representar hierarquias, relações de poder, status, posições assumidas e partilhadas nos territórios reais, virtuais e imaginários da rua.
Diferentemente das sociedades primitivas, onde o coletivo sobressai ao individual e as relações sociais se realizam dentro de estruturas mais lineares, fixas e homogêneas, nas sociedades complexas, as atuais sociedades urbanas, o indivíduo (o átomo social) é mais importante que a sociedade (o todo). Uma marca da individualização, da personalização, da demarcação de territórios e limites é a diferenciação representada pelo código de signos representados pela composição indumentária, a composição de um estilo. O indivíduo se autonomiza na massa e ao mesmo tempo a incorpora pela representação que faz de si mesmo, pela dramatização proposta pela forma de vestir-se, de compor um estilo, de comunicar valores sociais ou aspectos subjetivos que deseja expressar para o outro.
De acordo com Jean Baudrillard, na obra O Sistema dos Objetos, é através da personalização que as pessoas se definem em relação a seus objetos, estes constituem uma gama de critérios distintivos, mais ou menos arbitrariamente catalogados em uma gama de personalidades estereotipadas (Baudrillard, 1998). É este artifício de distinção que encontramos na produção e consumo de estilos de moda.
Tal artifício de distinção está presente na moda como imagem criada sobre o corpo, para Stuart Ewen, na obra All consuming Images; The Politics of Style in Comtemporary Culture (1990), o sonho da identidade que projeta no indivíduo uma realidade ambígua a partir da visualização de formas externas coexistentes, encontra no estilo o referencial de um novo significado ou circunstâncias para sua vida. Para o autor, o estilo é ferramenta da construção da personalidade. Assim, signos codificados em peças de vestuário, atuam como novas formas de expressão da subjetividade e identidade do indivíduo. Contudo, segundo Ewen, a construção da personalidade, cuja totalidade subjetiva é superficial e fragmentada, desarticula a realidade vivencial, substituindo-a por uma construção da totalidade almejada. Isto ocorre porque há uma busca pela obtenção de um ideal de beleza e de individualidade através do estilo.
Pensemos que a moda, ao promover a construção de estilos pela composição indumentária, torna o sonho da identidade e da totalidade descritos por Ewen acessíveis através do consumo. Para o autor, a expressão de uma identidade superficial através do estilo atua como forma de salvação do indivíduo da anomia, da segregação, do anonimato. Para tanto, modelos sazonais, que carregam referenciais de significados codificados no vestuário, provêm o indivíduo de uma nova forma de representação do “eu social”.
O estilo deve possuir, na justaposição de significados que determinam seu valor social, o apelo simbólico do sonho de consumo. Tais apelos encontram-se em elementos que venham a propiciar um referencial de status, da algo compartilhado consensualmente em círculos sociais como signo de distinção e que promovem a interação entre indivíduos efetuada pelo consumo da produção simbólica. A moda não é uma constante histórica fundada em raízes antropológicas universais.
Contextualizada no universo de produção e consumo de bens simbólicos na era atual, a forma moda descaracteriza a função utilitária do vestuário função essa, a de proteção do corpo em relação a agentes externos do meio ambiente e a redimensiona, convertendo-a em referencial de status, pode-se entendê-la também como uma forma de representação do indivíduo em relação ao meio social em que vive. A roupa torna-se, portanto, uma expressão, apresentação, comunicação em diversas instâncias, ou maneira de produzir a diferenciação de indivíduos ou grupos assim como a interação entre estes. É precisamente enquanto uma forma de produção simbólica que a moda aproxima-se, não apenas de um corpus para a criação artística, mas de uma forma de comunicação .
Desde a modernidade, a moda se aproxima das artes, dos esportes, do entretenimento, da tecnologia; contudo, é na pós-modernidade que ela se torna eXtrema: a incorporação desordenada de eventos, valores, entre tantas searas que compõem o mosaico da vida urbana pós-moderna e a reprodução estilizada destes sob o signo da mudança. A moda como entidade fluida a incorporar e ser incorporada nos apresenta e nos representa na vitrine da rua.
Essa moda que incorpora em estética e sentido o momento presente realiza o que Daniel Boorstin em The Image (1962), em sua análise sobre o poder da imagem sobre a sociedade Norte-Americana, define como nossas expectativas extravagantes ¾ queremos pertencer a um todo e ao mesmo tempo nos diferenciarmos de todo mundo através da imagem que produzimos e que nos é apresentada ¾ esta a grande chave da moda: queremos vestir o que todo mundo usa no momento, ‘estar na moda’, ao mesmo tempo em que não queremos nos vestir como ‘o coletivo’, queremos ser únicos, especiais. A relação paradoxal que constitui o interesse é um chamariz de consumo.
Tal qual uma vitrine do ethos urbano, a moda nos devolve a imagem da vida pós-moderna: o conluio em torno dos valores coletivos e a diversidade permanentemente transitória, fluida, que nos escapa e nos gera a sensação de obsolescência, de que não alcançamos o presente, embora estejamos impulsionados para o futuro. Sobretudo, nada nos apresenta com tanta força a imagem desta vitrine como a mídia e hoje, moda e mídia são um par constante. E no caminho entre moda e mídia, a figura do designer confunde-se com a imagem de um artista moderno, de um técnico especializado, de um profissional eclético, de um grande empresário, ou simplesmente, uma personalidade da mídia.
No universo da moda eXtrema, tal qual a Pop Art analisada por Baudrillard, a moda apresenta-se como manipulação de signos, orientando a dinâmica de consumo da produção simbólica. Ao atribuir a peças do vestuário, o aspecto de “mundo objeto” (1995: 120), enseja que a composição indumentária assuma no universo de consumo fashion, um sentido kitsch, de pseudo-objeto, de simulação, de cópia, de objeto fictício ou estereótipo. Por essa razão, ocorre por vezes, a pobreza de significação real e sobreabundância de signos, que exalta o pormenor e satura o contexto de minúcias. (Baudrillard, 1995:115)
A inutilidade funcional de tal contexto evoca também o gadget
[4]: cuja prática que dele se tem não é de tipo utilitário nem do tipo simbólico, mas lúdico, pois estas peças assumem apenas o estatuto de simulacros, na simulação de uma realidade cotidiana urbana, que assim como a Pop Art na visão de Baudrillard, “caracteriza-se como ideologia de uma sociedade integrada, sociedade atual-natureza-sociedade ideal” (Baudrillard, 1995:123), agindo como elemento de conluio, ao mesmo tempo que fundando-se no banal, reinstaura o processo sagrado da arte: aniquilando seu objetivo funcional fundamental ao passo que sua verdade não está em servir para nada, mas em significar.
Seguindo a lógica do consumo, a moda eXtrema também se torna a Pop Art da ornamentação do corpo, a exemplo da decoração, com a finalidade de produção de ambiência, ela representa a imagem construída a partir do corpo. Analisada enquanto arte pós-moderna da ornamentação do corpo, a moda integra o gadget e o kitsch
[5] num composto de apropriação, rearticulação e multiplicação de signos resgatando a exiguidade de valores distintivos que se originam na multiplicação de signos e objetos kitsch.
Ela é redimensionada pela agregação de sentidos múltiplos e se transforma, tal qual a Pop Art, em representação da vida na pós-modernidade. Podemos associar esse valor temático concebido por variantes estéticas de forma e estilo que é “corporificado” na expressão de moda, ao valor, espécie de abertura visada pela arte contemporânea de que nos fala Umberto Eco (1997:92), um valor que não se identifica, teoricamente, com o valor estético, pois se trata de um projeto comunicacional, que deve incorporar-se numa forma bem sucedida e eficaz; e que somente se realiza se amparado por aquela abertura fundamental própria de toda forma artística bem sucedida. Abertura esta, que poderia ser definida como acrescimento e multiplicação da mensagem.
É nesse contexto que a expressão de moda eXtrema, agregando à composição indumentária valores de ação comunicativa, forma de comunicação recodificada, de “folclores urbanos”, de uma cultura de rua, de representação de coletividades, poética cosmopolitana pós-moderna que usa o corpo como a dramatização de subjetividades e que é caracterizada como estilo, torna a moda obra de arte, obra aberta, a lhe serem atribuídos novos valores, significados, referências de acordo com o consumidor que dela faz uso como signo utilitário.
E mais. Ela também é o oposto da arte, é também o lugar comum, é a produção serial, é pura edição a partir de um modelo, transita entre o único e o medíocre, entre o anonimato e o hype, conforme a orquestração de imagens que a sociedade produz e reproduz de si mesma, num sentido desordenadamente xamanístico, a incorporar, agregar ¾ avatar, entidade... Moda eXtrema.

Dos Estatutos da Moda na Contemporaneidade

Abordando-se o fenômeno moda em sua complexidade na urbe contemporânea, faz-se necessário uma breve contextualização dos estatutos e significações a ele atribuídos e que podem melhor dimensionar o que constitui a moda hoje.
Observando a história da indumentária, percebemos que o estatuto adquirido pela forma moda altera-se conforme as evoluções da sociedade ocidental. O século XIV marca o surgimento da moda como produção pós-artesanal, até a metade do século XX, temos a moda como elemento substancial da definição de classes, categorias sociais, a moda pós-guerra da segunda metade do século XX tem a contestação como padrão, caminhando paralelamente ao desenvolvimento de culturas de estilo na sociedade de consumo. Todavia, no presente artigo contextualizamos o objeto de pesquisa no desenvolvimento da sociedade pós-industrial.
O fenômeno moda passa, necessariamente, por uma dimensão temporal, como quando se diz: “o silicone está na moda”, sugere-se que uma determinada prática é tomada como up to date, nesse caso, nada tem a ver com roupa, mas significa alcançar uma posição imediata no momento presente que é reconhecida consensualmente e passa a ser imitada. Vemos, portanto, que a dimensão sociocultural da moda acaba por produzir uma aliança entre a produção material de bens e o consumo simbólico da dimensão temporal, imediata que esses bens ou práticas adquirem. “A última moda” refere-se ao uso, a prática ou o consumo de algo que é constituído por uma dimensão simbólica de presente imediato, esse o seu valor máximo, significar o alcance do imediatamente novo ¾ esse seu capital cultural (termo que, conforme vemos em Pierre Bourdieu, significa o valor acumulado que possui em termos de cultura), que, no caso da produção de bens materiais, converte-se em capital financeiro.
Sendo esse capital cultural concebido sob a égide do imediatamente novo, o valor da moda entendida como produção de bens materiais situa-se inegavelmente no campo do efêmero. Nesse caso, ele se insere no contexto do valor atribuído por diferenciação e oposição ¾ a moda nas saias deste verão as diferencia da moda das saias do verão passado ¾ é a partir dessa diferenciação com o passado imediatamente anterior que seu valor é constituído. Todavia, essa diferenciação no universo do valor de moda atribuído, não se refere ao passado mais distante, do qual signos e significados podem ser usados na moda presente, assim sendo, como retrô, ou uma revisitação às antigas modas.
Como exemplo, atualmente, modas dos anos anteriores, como as camisas xadrez do grunge (grupo de estilo originado em Seattle, nos EUA) dos anos 1990 estão ‘fora de moda’, ou seja, seu valor de uso para o sistema da moda é nulo. Contudo, as mini-saias e o estilo gótico dos anos 80, assim como referências em cintos de metal e visual punk estão em moda, foram incorporados ao contexto da produção de bens que significam o imediatamente presente, a última novidade, embora tenham entrado em desuso em anos anteriores.
Portanto, os bens com valores atribuídos de moda, não tem significação material, o que pode ser analisado conforme o pensamento de Baudrillard em Para uma crítica da economia política do signo (1995), esse objeto de consumo só ganha sentido na diferença com os outros objetos, segundo um código de significações hierarquizadas. Assim, a moda como valor é consumida através das significações atribuídas aos eventos e aos objetos, a despeito de seu valor funcional ou até mesmo estético.
É a partir dessa estrutura de significações, em termos de moda como produção material, que a forma moda como cultura traz à voga significados traduzidos em estética que marcam o momento absolutamente presente. Não ao acaso, a produção de bens com expressão de moda, traz em seu bojo representações de eventos, ideologias e lógicas que marcam o momento presente. Ao agregar significados do novo momentâneo, a moda em produção material, em seu melhor exemplo, na produção do traje, representa de várias formas, em diversas variantes estéticas, elementos do inconsciente social
[6] das tensões, dos prazeres e dos conflitos do presente imediato.
Assim, podemos observar que o fenômeno moda esteve presente na emergência das vanguardas artísticas do início do séc. XX — como no surrealismo — a intercambiar significados e significantes com a arte. Paralelamente, também foi elemento chave no desenvolvimento da sociedade de consumo que eclodiu a partir do capitalismo industrial. Ao mesmo tempo em que fazia parte do universo imaginário de Man Ray e acompanhava a evolução da arte contemporânea, estava de braços dados com o poder do capital, a movimentar a então nascente grande indústria e o mercado.
Portanto, não é de hoje que a moda incorpora eventos diametricamente opostos ou conflitantes da sociedade contemporânea, mas nunca, como nos dias de hoje ela foi tão sujeito, produtora e reprodutora destas manifestações. Talvez esteja aí o centro da grande polêmica a seu respeito: ela transita entre os opostos da contemporaneidade, os mistura, recria e é para alguns, muito frívola para ser teorizada e para outros, muito séria para ser lançada na vala comum dos gadgets.
A moda hoje pode ser lida como uma “vitrine do mundo moderno”, onde a realidade contemporânea é a base do conceito de criação, além de converter-se em forma de comunicação, a expressar a forma como indivíduos e coletividades sentem e se manifestam sobre suas formas de vida. Arte/arquitetura/comunicação pára-corpórea. Registro histórico, corpus antropológico, ideológico, também futurista ¾ a moda veste a rua.
Durante a pesquisa desenvolvida, buscamos elucidar a relação entre a cultura urbana contemporânea e as criações dos designers ingleses, pois, curiosamente, são as criações lançadas por estes criadores que criticam a superficialidade do universo da moda que se tornam tendências a movimentar o grande mercado do vestuário e as marcas mais caras e cobiçadas. Percebemos que em grande parte, estes criadores inspiram-se na rua, na cultura urbana e na vivência marginal de grupos de estilos que habitam os grandes centros urbanos.
O universo da moda tornou-se uma dimensão agregadora de significados da sociedade pós-moderna, não mais apenas símbolo de distinção social, busca da beleza, arma de sedução, a moda agrega valores e conteúdos de universos antes estranhos, ou mesmo antagônicos a ela. Na fluidez conceitual que a define (ou indefine), a moda transita e incorpora domínios da arte, arquitetura, teatro, tecnologia, mídia, política e, sobretudo, comunicação. Ela é um fenômeno contemporâneo que, pela própria velocidade dos atuais processos de comunicação, nos escapa à prisão conceitual. Mutante-mutóide, conforme o pensamento de Canevacci, sua ação é a de um elemento de signo desterritorializado a incorporar significados em deslocamento progressivo.
Atacada por todos os lados, a moda e seus simpatizantes são “enxotados” para a periferia das considerações acadêmicas. Ela torna-se, não o oposto à “high culture”, mas pior, “no culture”, ausência, produto desprovido de qualquer essência, autenticidade, alma. Muitos são os estudiosos a defender a low culture, muitos são os que defendem a “música ligeira”, fenômenos de massa, culturas de consumo, mas moda parece algo sempre associado à “despersonalização”, à “não-consciência”, à busca de implementar o exterior para compensar a ausência de conteúdo interior, pastiche aceito e apreciado por mentes fracas. Nosso intuito a partir destas constatações, não é o de necessariamente legitimar o tema, todavia, propõe um exercício intelectual que busca dar voz aos elementos despercebidos que envolvem o universo da moda atual e permitir a reflexão sobre aspectos que redirecionam os caminhos na moda nos dias de hoje.
Na Inglaterra, para conhecer moda não se lê revistas, se vai ao museu. Das roupas que ilustram a história da Grã-Bretanha desde o século XIV no Victoria & Albert Museum, às exposições sobre o Surrealismo e as fronteiras do desejo no Tate Modern, onde a relação entre moda e arte aparece como avant gard entre os surrealistas, moda é latto sensu, strictu sensu e até mesmo quando nonsense, cultura em primeira instância. É nesse universo, rodeados de manifestações culturais que os designers inglesas desenvolvem suas criações.
Transitando pelo pós-moderno e o histórico, designers de moda como Vivienne Westwood recriam a vivência histórica da cultura britânica para se usar sobre a pele. Sua história no mundo da moda é fascinante, de idealizadora e mãe do movimento punk nos anos 70, passando pelo revival do universo dos piratas nos 80 até a reinvenção da moda da corte da monarquia inglesa nos anos 90, a primeira dama do circuito fashion inglês ainda é mãe do darling da moda underwear sado-masoquista inglesa, seu filho John Corré é dono da Agent Provocanteur, o bondage chic mais famoso de Londres.
Alexander McQueen, o bad boy da moda londrina, amado e odiado pelos shows de horrores que promove em seus desfiles, leva os jornalistas dos gritos às lágrimas, mas fato é que, com essa quintessência “artaudiana” , é impossível que alguém se sinta indiferente às suas criações. Acusado de misógino, low class, skinhead, “oik gay culture”, de linguagem cockney, bruto, totalmente subversivo, o trabalho de McQueen é a violência psicológica urbana modelada sobre o corpo.
Embora Westwood atualmente trabalhe conceitualmente sobre a história e McQueen sobre a realidade pós-moderna, ambos têm muito em comum: são outsiders que hoje influenciam todo o universo da moda ¾ ambos derivam de grupos de estilo ¾ atual cultura extrema, ambos são inovadores não comprometidos com tendências de mercado ¾ eles não seguem, mas criam tendência ¾ além de vizinhos: suas lojas na badalada Conduit Street ficam cerca de cinco metros de distância uma da outra.
Embora este trabalho, uma reflexão sobre moda e cultura urbana contemporânea, não desenvolva uma abordagem estética ou técnica sobre a moda, a apreciação das criações e referências à estilística do trabalho dos designers mencionados, serve ao propósito de contextualizar a estética no pensamento conceitual dos criadores que fazem da moda a vitrine da urbe. Cada designer de moda abordado possui a sua maneira peculiar de traduzir na criação da vestimenta, linguagens e processos comunicacionais do universo empírico da rua, essa, a característica fundamental que transforma a moda contemporânea num objeto de conhecimento antropológico, histórico, social e político. A arte está na rua. A rua está na moda. A moda está na arte.

Da moda como Discurso

A relação simbiótica entre a criação de moda e a vivência contemporânea dos fatos, valores e inquietações sociais, faz com que estes acabem sendo refletidos nas coleções dos designers de vanguarda servindo como discursos sobre a realidade vivida no mundo contemporâneo, um discurso estético que reflete em muito, as opiniões dos estilistas e sua forma de protestar, como Alexander Mcqueen no desfile da coleção Highland Rape ¾ o estupro das terras altas (Escócia), uma alusão às ações da Inglaterra na Escócia, sugerindo que este país foi devastado “estuprado” pela Inglaterra. Neste contexto, a moda utiliza-se da estética para comunicar idéias, em discursos que podem estar próximos da arte.
Tal fato pode ser observado no texto da edição de 14 de outubro de 2001 do jornal inglês The Observer, a seção Review mostrava duas fotos de meia página dos designers Giorgio Armani e Jean Paul Gaultier, com os dizeres: “Is the future of art in their hands?” A manchete do jornalista Deyan Sudjic, certamente reflexo do sucesso alcançado pela exibição Radical Fashion no V&A Museum, argumentava que a moda sempre emprestou elementos da arte para sua inspiração, todavia, agora são os designers de moda que dominam as galerias e museus. Segundo Sudjic, a moda é parasitária, depende de outras formas de arte para seu imaginário e identidade e, tem sido tão bem sucedida com isso que começou a substituí-la.
De Claire Wilcox, curadora do evento Radical Fashion a Yohji Yamamoto, um dos expositores, envolvidos com moda declaram que esta não é e não tenta ser arte. Na verdade, nem precisa, são os críticos de arte que trouxeram a moda para os museus. Os arquitetos e designers da Royal School of Art em Londres, sentem-se indignados pelo termo “fashion designer” ser atribuído aos couturiers, dado que, um designer de “roupa” não pode ser considerado um designer de fato. Irônico é o número de arquitetos e designers que procuram o MA in Fashion Design na Central Saint Martin’s School of Fashion buscando a moda como novo meio de experimentação em arquitetura, ou mesmo, as relações entre a produção de roupa e design de interiores desenvolvidas por Hussein Chalayan, onde uma mesa pode tornar-se uma saia e os revestimento de sofás, tornam-se vestidos.
A moda pode, como ressalta Sudjic em sua matéria para The Observer, unir uma estrela de futebol com um rapper, um artista de teatro, um pintor e um grande diretor de cinema na mesma fileira de assentos de um desfile de moda, além de atrair a atenção de banqueiros, industriais e artistas.O jornalista conclui: A moda tornou-se ao mesmo tempo indústria dominante e força cultural dominante: faz força capital como nenhuma outra indústria e produz cultura como só as grandes vanguardas podem produzir.
É difícil dizer que a moda tomará espaço entre nichos deixados pela arte, ou que o próximo Niemayer fará corselletes de alta costura, mesmo porque, converter moda em arte ou arquitetura não é o objetivo dos designers, mas o ponto que marca a grande diferença da moda dos últimos vinte anos, é o que lhe permite “atravessar” instâncias como a arte, o mercado e a arquitetura: as roupas passaram a comunicar o que vemos e sentimos em relação à vivência na sociedade contemporânea.
É a partir da evolução do evento moda como “forma de comunicação” que ele tornou-se fenômeno contemporâneo, pós-industrial, a agregar valores e significados. Alexander McQueen caracteriza suas criações como “formas de dizer seu pensamento sobre a realidade”, Vivienne Westwood recria em seus vestidos de tafetá, suas abstrações referentes à Revolução Francesa, ou releituras sobre a história do Império Britânico, Hussein Chalayan fala sobre a atrocidade da guerra sobres as famílias e suas vidas através de suas criações roupa-mobília.
Todos esses designers de moda têm suas coleções nas manchetes de jornal entre: as alusões de filósofos, as interpretações de literatos, as prospecções de economistas, as manchetes de esporte, a seção de fofocas, o suplemento feminino e os anúncios de página inteira. Circulando pela alta cultura, pelo grande mercado, pela vida de celebridades, pelo universo feminino (e hoje também o masculino) e pela cultura marginal, a entidade moda “encarna” aspectos dos mais importantes e antagônicos setores da vida urbana moderna.
É a partir da composição indumentária como discurso que a moda assume novos atributos nos últimos vinte anos. Não que as roupas não possuíssem linguagem, forma de comunicar características dos usuários anteriormente, como vemos nas obras de Roland Barthes – O Sistema da Moda e de Allison Lurie – A linguagem das Roupas, mas, neste artigo nosso foco é uma reflexão sobre uma nova ceara da moda gerada a partir das últimas décadas, onde roupas produzidas pelos designers aqui abordados deixaram de ser objeto das relações humanas a comunicar status, classe e gênero e passaram a comunicar (pelas criações dos novos designers), enquanto corpus material a incorporar valores imateriais, visões de mundo, ideologias, conflitos e toda uma gama de realidades imateriais da vivência urbana contemporânea que assumem a forma moda e suas possibilidades de “discurso vestido sobre a pele”, para comunicar dimensões alheias ao universo fashion.
Nesse contexto, os discursos que incorporam a entidade moda, podem ser discursos baseados na sensorialidade: a arquitetar formas de uma realidade estilizada na roupa — como nas criações de McQueen, onde a roupa propõe um diálogo com o corpo sobre uma realidade vista sob a ótica do bizarro, da violência corporal e psicológica, do sofrimento feminino e da beleza sublime, desta forma, a aproximar-se conceitualmente da “arte como discurso”. Ou então, discursos orientados pela racionalidade: com pressupostos ideológicos a comunicar um pensamento racional, onde a roupa comunica uma visão intelectualizada sobre a realidade — como Hussein Chalayan, que se auto-define como um “homem de idéias”, criando roupas que falam sobre a realidade que o rodeia. Muitos destes discursos, podem ser orientados pela sensorialidade e a racionalidade ao mesmo tempo, como nas propagandas da grife Benneton, onde o fotógrafo Toscani nos choca em suas imagens com um discurso sensível, mas muito racional, pois que baseado em questões de alteridade e preconceito.
O trabalho de Chalayan integra obras do aclamado Tate Modern Museum em Londres, como seu vídeo e exibição Living Room Show, parte da seção Century City, onde modelos se vestem com a mobília arrumada no palco, então uma mesa é transformada em uma saia, a capa de um sofá torna-se um vestido. Todavia, para além da aliança entre design de moda e arquitetura, Chalayan explica que a criação fala sobre temas relacionados ao asilo – alguém tendo que deixar sua casa instantaneamente e levando consigo o que puder – como em situações de guerra. Sua fascinação está no corpo e na narrativa cultural através das roupas. Ele é “cerebral onde McQueen é teatral, austero e arquitetural onde McQueen é sexy” (Wilcox, 2000), enquanto um fashion designer intelectual, Chalayan lê filosofia e história e suas criações “falam” sobre religião, opressão e isolamento — uma reflexão intelectual que se aproxima da filosofia como discurso.
Quando McQueen vestiu Aimee Mullins, a ex-atleta cujas pernas foram amputadas, com uma armadura de couro medieval e pernas esculpidas em madeira, para além de instalação viva, arquitetura híbrida do corpo, imagem cruel de rara beleza, o designer nos falava através da forma moda sobre realidades que fazem parte da vivência humana e que habitam um universo oposto ao universo da moda: enquanto a forma moda busca a fantasia da beauté, da perfeição das formas do corpo, da sedução e da frivolidade, a imagem de Aimee nos falava da perda, da dor, da mutilação, da conquista e da possibilidade. O universo da beleza e perfeição era então usado para falar da deficiência, do horror, da hibridização, do grotesco aspecto da vida que a lógica da moda ignora.
É esta a grande diferença da moda dos últimos vinte anos: ela não é apenas temática: uma coleção não apenas possui o tema safári, ou aviação, ou oriente, ela é hoje analítica, reflexiva, contestadora e auto-contestadora, espaço para discussão da vivência da rua, ela não copia a realidade, mas se comunica, discute, vive e a rearticula. Tal qual a antropologia pós-moderna ou reflexiva — que produz uma discussão sobre si mesma, a moda da era pós-industrial é auto-crítica, auto-reflexiva, aberta ao pensar e ao sentir e seu corpus é comunicação desta vivência sensorial e intelectual.

CONCLUSÃO

Em face da inexistência de conceitos que definam a moda produzida a partir dos anos 80, e, em especial nos anos 90, cujo caráter experimental e aproximações da arte e arquitetura por um lado e, ruptura para com paradigmas do sistema da moda de outro, desenvolvemos uma nomenclatura para categorizar e delimitar o objeto de estudo, diferenciando-o das demais expressões de moda existentes na grande indústria do vestuário. Concebemos como Moda eXtrema a forma moda em sua dimensão cultural que data das últimas duas décadas do século XX. Conceito gerado a partir da idéia de juventude e sociedade eXtremas de Massimo Canevacci (que foi orientador desta pesquisa na Universitá La Sapienza): conceito disjuntivo, descentralizado, destinado à “não-síntese”. Ele é definitivamente, um fenômeno social na pós-modernidade, que se desloca acompanhando progressivamente a evolução da sociedade contemporânea, por essa razão, é fluido, modifica-se constantemente ao incorporar valores, significados, atribuições que o reformulam constantemente, de forma que as associações ao termo moda dentro da literatura especializada sobre o assunto, são diversas e nem sempre aprofundadas.
Acreditamos que o termo moda, amplamente estudado nesta tese, e visivelmente ainda pouco explorado no universo acadêmico como conceito, abstração, idéia, é, como parte dos fenômenos culturais da pós-modernidade, um conceito líquido, mutante, mutóide, híbrido, indefinido, desterritorializado, in between. Ele pode ser associado a democracia e modernidade, como em Lipovetsky, ao mercado como em Corrêa, ao simulacro ¾ relações entre objetos representando relações entre pessoas — de Baudrillard, ou à cultura sterminada, como em Canevacci.
Percebemos que a moda a partir das últimas duas décadas, tem adquirido novos estatutos, dimensões outras que a constituem como uma vitrine da sociedade urbana contemporânea. Não porque a moda mostra o que as pessoas vestem nas ruas das cidades, ou porque ela ‘copia’ os movimentos juvenis, mas porque ela tornou-se uma forma de discurso que se aproxima da arte e da filosofia numa relação simbiótica com estes movimentos.
Geramos esta forma de definição de moda, após os quatro anos de pesquisa no doutorado, dado que nenhuma das definições de moda encontradas em investigações teóricas nos pareceu convincente. Certamente foi uma escolha arriscada, pois seria mais fácil tomarmos as definições já desenvolvidas por Lipovetsky ou Baudrillard, mas foi na busca de realização de um trabalho de reflexão, do questionamento dos paradigmas já desenvolvidos sobre moda, que desenvolvemos as definições e conceitos aqui expostos.
Vestir a rua, idéia-título deste trabalho, é a representação simbólica da relação entre a forma moda de vanguarda atual e a sociedade urbana contemporânea, heterogênea, pós-moderna. O jogo das palavras sugere:
Que a moda enquanto produção que se aproxima da arte e da filosofia, ‘se veste’, incorpora os valores, os significados, os eventos e os fatos mais importantes que ocorrem na moderna sociedade ocidental, tal qual uma ‘entidade’ a incorporar aleatoriamente elementos determinantes da cultura contemporânea. Essa moda, produzida pelos novos fashion designers, ao incorporar, ‘vestir-se’ destes significados, apresenta em sua composição estética, discursos sobre a realidade vivida na desordenada e inconstante urbe ocidental.
Que a moda eXtrema em seu capital cultural nos ‘veste’, (nós, os indivíduos habitantes da urbe pós-moderna) nos traz o universo simbólico da cultura da rua, da metrópole, da cultura urbana fluida, deste mosaico de valores que são traduzidos em estética na roupa como forma de comunicação de discursos ideológicos, filosóficos, próximos da arte que são produzidos pelos fashion designers da atual moda eXtrema.
É importante expor que quando falamos desta moda, nos remetemos à moda criada por costureiros da vanguarda, principalmente inglesa, que se utilizam da estética da roupa para discursar sobre realidades e abstrações sobre estas realidades da vida na sociedade atual.
O objeto em questão não é necessariamente a moda elegante de Chanel ou a classe de Prada, nem mesmo é o produto final da grande indústria da moda, mas a composição estética da roupa que atua como discurso, como comunicação de idéias formuladas por jovens criadores de vanguarda que, na verdade, nos falam de dimensões da vida contemporânea que outrora foram desprezadas pelo sistema da grande indústria da moda. Este objeto de estudo está num produto que é fruto de uma verdadeira inversão de valores no universo da moda, onde a roupa torna-se o corpo de mensagens de crítica e até mesmo auto-crítica, como vemos nas peças de Alexander McQueen e Hussein Chalayan, um produto da fragmentação de ideais que acompanha a moderna sociedade ‘fluida’, que questiona a própria noção de beleza e busca a beleza ideológica do bizarro para subverter a ordem da elegância típica da Alta Costura e da grande indústria das confecções.
Enquanto para muitos as roupas rasgadas são subversão, para a moda eXtrema isso apenas promove o espetáculo da pseudo-transgressão, uma pseudo-ruptura onde a transgressão dos movimentos juvenis fora cooptada pela grande indústria da moda. A verdadeira crítica para estes novos criadores, é questionar os próprios padrões de beleza da indústria da moda, colocando, a exemplo de Alexander McQueen, uma mulher obesa nua como estrela de seu desfile em Paris, ou usar como modelos, deficientes físicos que expõem suas deficiências ao público.
Observamos períodos sócio-histórico que ‘moldaram’ a moda conforme o desenvolvimento das sociedades urbanas ocidentais. A moda na modernidade assimilou todas as grandes mudanças, invenções e inovações no seio da moderna urbe. Ela se constituiu a partir de inovações na ciência e tecnologia e mudanças no ethos das metrópoles. No início do século XX ela expressou tanto em seus meios de produção, quanto na estética das roupas, as novas posições assumidas pelas mulheres, sua inserção no mercado de trabalho mudou a imagem da mulher em moda e, mesmo os protestos das feministas emergentes contra a indústria da moda a colocou novamente sob a luz das revoluções históricas.
A moda eXtrema que se veste de rua ao metaforicamente incorporar xamanísticamente as dores, os conflitos, os prazeres mundanos e a vivência do Outro, dos excluídos que vivem à margem do universo da beleza e do glamour da moda, ao mesmo tempo nos veste com as dimensões simbólicas que representam essa rua, nos veste de volta com o capital simbólico e o conteúdo comunicacional das criações conceituais dos designers de vanguarda, nos veste com a cultura urbana da metrópole, com suas contradições e relações paradoxais.
Assim, podemos ‘ler’ no discurso desta moda e seus desdobramentos a nossa própria história social e a cultura formada nos dias de hoje, quando, novamente uma nova forma de se fazer, pensar e criar moda nos expõe a realidade vivida na urbe pós-moderna. A moda eXtrema, aqui tomada como objeto de reflexão, é esse discurso estético permeado de contradições e pleno de conteúdo simbólico vestido no corpo, é um desenho da vida pós-moderna onde vemos o que somos e não apenas, como na moda clássica plena de glamour, vemos o que queremos ser. Vemos o Outro, para podermos enxergar a nós mesmos.








BIBLIOGRAFIA

BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo. trad. de Artur Mourão. Rio de Janeiro, Editora Elfos, 1995.
___________________ Para uma economia política do signo. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
___________________ O Sistema dos Objetos. São Paulo, Perspectiva. 1997.
BARNARD, Michael. Fashion as Communication. London, Routledge, 2001.
BOORSTIN, Daniel J. The Image. Boston, Pelican Books, 1963.
BOURDIEU, Pierre. “Le couturier et as griffe”: contribution à une théorie de la magie. Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, 1975.
CANEVACCI, Massimo. Cultura eXtrema, Mutazione Giovanili tra i corpi delle metropoli. Roma. Meltemi editore. 1999
DA MATTA, Roberto. A Casa e a Rua. Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco. 1997.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva. 1997.
EWEN, Stuart. All consuming Images; The Politics of Style in Comtemporary Culture. San Francisco, Basic Books, 1990.
FRANKEL, Susannah. Visionaries, Interviews with Fashion Designers. London, ed. V&A, 2001
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
MAFFESOLI, Michel. “A comunidade emocional”, in O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 1987.
SENNET, Richard. O Declínio do Homem Público. As Tiranias da Intimidade. São Paulo. Companhia das Letras, 1982.
SUDJIC, Deyan. Is the future of art in their hands? In The Observer, 14 de outubro de 2001, Seção Review.
WILCOX, Claire. Radical Fashion. London. V&A Publications, 2001.




[1] Vestindo a Rua: Moda, Comunicação & Metrópole

[2] ambos designers que cursaram a Central Saint Martin’s School of Fashion and Design, literalmente, uma escola de vanguarda da moda
[3] Conceito será explanado adiante no texto.
[4] objetos de consumo definidor por Baudrillard como inutilidades funcionais, são menos confeccionados por uma função a ser desenvolvida e mais para nossa contemplação obssessional, como um descascador de ovos movido à luz do Sol. Baudrillard (1997: 121)
[5] Segundo Abraham Moles, é a mercadoria ordinária, um estilo marcado pela ausência de estilo, a uma função de conforto acrescentada às funções tradicionais, ao supérfluo do progresso. Moles, (1986:10)
[6] segundo Erich Fromm: a parte específica da experiência dos seres humanos que a sociedade repressiva não permite que chega à consciência dos mesmos

Um comentário:

suzie disse...

olá
estou procurando pessoas que se interessem pela moda, " enquanto" comunicação...
sou design de moda em curitiba e mantenho um blog de linguagem simples e com imagens eloquentes...
acesse: suzienascimento.zip.net e d~e sua opinião...
vai ser muito útil...