A moda é um conceito estatístico. Aquilo que mais aparece num dado momento. Assim como o universo do consumo possui uma dinâmica de produção e reprodução de tendências que ciclicamente reorientam a forma como vemos e vivemos a realidade, o mercado e o mundo corporativo também são acometidos por hypes, modismos e ondas de euforia em torno de neologismos e estruturas de pensamento. A internet vista como um "novo mundo onde habitam as pessoas" é a tônica do momento, é a nova corrida do ouro para o mercado que chafurda na lama virtual em busca de infomações sobre o cliente (em pesquisas quase sempre tendenciosas) e formas de influenciá-lo, sem no entanto compreender de fato como se relacionam as pessoas por meio do virtual e como se cria uma cosmologia (universo vivncial) do virtual na vida cotidiana.
Em 1996 após concluir minha graduação em antropologia, iniciei uma pós-graduação na área de Multimeios na UNICAMP, onde estudava, entre outras coisas, a influência das novas tecnologias da informação nas relações e dinâmicas de comportamento humanas.
Em 1996 após concluir minha graduação em antropologia, iniciei uma pós-graduação na área de Multimeios na UNICAMP, onde estudava, entre outras coisas, a influência das novas tecnologias da informação nas relações e dinâmicas de comportamento humanas.
Na época poucas pessoas tinham acesso constante à internet e a rede não possuía a representatividade que vemos hoje na vida cotidiana, nos negócios e no lazer. Era uma nova e interessante fronteira a ser mapeada e interpretada, pois não se sabia ao certo o tipo de influência que causaria no modus vivendi das pessoas. Mas fato é que nós do meio científico éramos entusiastas da idéia da tecnologia digital como a realização da profecia de McLuhan (A aldeia global), pois muito antes da internet, há mais de duas décadas, o processo de "aceleração do tempo" e redimensionamento das relações inter-étnicas, da multiculturalidade, do mosaico de tendências socioculturais que constitui a realidade da segunda década do século XX, já estava sendo formado e disseminado aos poucos.
Hoje em dia vejo em matérias de revistas, em cursos universitários, no discurso de falsos-gurus do marketing e até em mesas de botequim um frenesi em torno do assunto "a internet mudou a vida das pessoas", de como "a internet determina como vivem e viverão as pessoas" e mais um sem fim de profecias de auto-realização que me deixam cada vez mais frustrada em relação à falta de repertório tanto cultural quanto científico por parte daqueles que deveriam ter mais propriedade sobre o que falam, pois muitos se auto-intitulam "influenciadores" (outro termo hype, outra profecia de auto-realização), especialistas em mercado digital e discursam sobre os caminhos da vivência contemporânea vendendo a imagem do que será o futuro, mas sem conhecer nem mesmo o passado recente que serviu de arcabouço para este.
Os fatos: Anos antes da internet, no fim dos anos 80, a queda do muro de Berlim criou uma nova conjuntura ideológica quando a guerra fria deixou de mobilizar os medos, os objetivos e as perspectivas de futuro em torna de uma homérica polarização geo-política: o antagonismo Ocidente Capitalista X Socialismo do Leste Europeu. Não apenas a dimensão política antes da queda do muro era movida por antagonismo mas também o universo dos grupos culturais urbanos era, curiosamente, demarcado e polarizado (vide meu livro "Cenários do Rock" Editora Olho D´água, São Paulo, 2004), com grupos de estilo compartimentalizados, a moda de tendências definidas e aé vanguardas musicais e artísticas de escolas e estilos mais delimitados. Ora, a organicidade das relações humanas é da mesma natureza dos sistemas que movem a vida: a correlação entre causa e efeito na macroestrutura social gera a dinâmica de reprodução de um processo ou mudança em várias microestruturas, assim como uma infecção que tomando um dedo atinge a corrente sanguínea e espalha a febre para para o corpo todo.
Pois bem, mal caía o muro e já víamos que o vírus das fusões, intersecções e reorganizações dos sistemas culturais ocidentais (e dos mercados) começava a tomar o mundo e desenhar uma nova dinâmica de relações culturais. O tempo começava a passar mais depressa. Já não era possível acompanhar as mudanças em segmentos que íam da música ao desenvolvimento científico, passando pelo mercado, com a mesma cadência que antes. Cronos começava a escorrer por entre nossos dedos sem percebermos e as fronteiras culturais e geográficas começavam a se esfacelar.
1990 virou a página do livro da contemporaneidade sem percebermos. Anos antes da internet o fenômeno das intersecções e reorganizações culturais que passou a ser chamado por sociólogos de Globalização (E QUE EM FUNÇÃO DA IGNORÂNCIA DE MUITOS, ESTE TERMO TORNOU-SE UM JARGÃO QUE PASSOU A REPRESENTAR A EXPROPRIAÇÃO DOS PAÍSES RICOS SOBRE OS PAÍSES POBRES, MAS QUE EM SUA ESSÊNCIA, ESSE TERMO NADA TEM A VER COM TAL PROCESSO) começou a ser estudado por pesquisadores como a "nova ordem cultural".
Em 1990 o mestre Octávio Ianni (de quem tive o privilégio de ser aluna e aprender sobre o tema) lançou o livro "A Sociedade Global", onde expunha o processo que se iniciara nas grandes navegações no século XV com o intercâmbio entre culturas por conta da atividade mercantil e que se intersificara exponencialmente no fim dos anos 1980, início dos anos 1990, por conta dos processos comunicacionais globais e pela intensificação das trocas culturais entre diferentes grupos. Em 1992 me lembro que estudada a disciplina de Relações Internacionais com Shiguenole Yamamoto na UNICAMP e li um artigo de Samuel Huntingnton no qual o autor defendia a tese que a queda do muro de Berlim criara umproblema nas estruturas de poder político no Ocidente, pois os Estados Unidos perderam seu maior inimigo e uma potência sempre precisa de um inimigo de peso para obter a sanção social e a hegemonia cultural.Hungtinton então expusera a guerra ao narcotráfico iniciada por George Bush pai (na qual o exército americano invadira a Colômbia em busca de Pablo Escobar) como como o conflito que substituíra a Guerra Fria contra a URSS.
Curiosamente, finda a grande polarização entre Estados Unidos e URSS, vemos a erupção de uma grande sucessão de conflitos étnicos, guerras que assolaram o mundo em regióes de fronteiras, desde a guerra da Bósnia entre Sérvios e Croatas, passando pela Guerra do Golfo, a separação entre Etiópia e Eritréia, Paquistão indade Caxemira entre outros.
Podemos pensar que a reorganização cultural do mundo em termos, não mais de um duplo pós-segunda guerra (EUA - URSS) mas de um mosaico de etnias e poderes que passam a se justaposicionar é um fator de influência e de alguma forma, também sintoma de um novo sistema que criara uma rede mundial multiculturalista a vivenciar choques culturais e antropofagias culturais muito antes da internet.
O fenômeno da World Music se difunde pelo mundo no início dos anos 1990 expondo essa rede ao trazer a música do interior da Índia para o eletrônico, o maracatu para o rock e canções folclóricas celtas para as rádios do mundo todo - sem blogs, You Tube ou podcasting - a rede cultural não-digital apanhou o mundo promovendo processos de trocas simbólicas, comerciais, culturais, uma grande Babel de informações que se disseminava por todos os meios possíveis, rádio, TV, mídia impressa, correio, a comunicação se processara como um vírus a buscar hospedeiros e infectar homens e mulheres no mundo todo com a febre da busca pelo Outro - a diferença começa a se tornar um valor e uma busca constante.
Em 1990 o grunge surge como um caldo cultural que mistura o novo e o antigo, o punk e o folk, homem e mulher, agressividade e fragilidade. Em 1992 o Festival Lollapalooza reúne jovens do mundo todo como um Woodstock que mistura rock, circo, folclore, música étnica e a nova onda de fusões e experimentações eletrônicas de bandas como Nine Inch Nails. No Brasil, o mesmo se repete no festival Junta Tribo, realizado na UNICAMP, trazendo bandas como o Raimundos, que juntou disco music com hardcore, enquanto Chico Science colocava a antena parabólica na lama no seu maracatu atômico.
A rede arrebatava a todos. NÃO ERA DIGITAL, não era internet. Era analógica. Era a cultura com seus braços longos a polinizar o mundo.
"A internet mudou o mundo". Don´t be silly. O mundo mudou antes da internet. Vinha mudando, mas você estava dormindo. Provavelmente quando acordou ficou deslumbrado com a possibilidade de dizer que comeu banana, tá com dor de barriga e assistiu ao Faustão num mini blog chamado Twitter.
Provavelmente deve dizer que a internet mudou sua vida e que sem ela e seu I-Phone morreria. Assim como minha mãe deve ter dito à mãe dela que sem a televisão morreria. Assim como a minha avó deve ter dito à minha bisavó que sem o telefone morreria. Assim como minha bisavó deve ter dito à minha tataravó que sem a luz elétrica morreria... Posso parar por aqui, ou você já entendeu?
Todas as espécies vivas se adaptam. A adaptação é uma dimensão poderosa da vida. Mas o ser humano faz mais. Ele cria as condições de adaptação e muda o mundo ao seu redor (claro que para pior em grande parte das vezes, como estamos vendo na degradação da natureza), mas antes de toda a tecnologia que o faz redimensionar o mundo, ele tem as condições de sua cultura e seus processos relacionais, que embora mais acelerados com a internet, respondem a uma sistemática de séculos de sedimentação. Você pode aproximar mais rápido duas pessoas, mas não muda a dinâmica do amor. Você pode colocar várias pessoas em contato ao mesmo tempo, mas nada muda ou substitui a essência de um abraço amigo. Você pode fazer uma reunião com pessoas se vendo estando as mesmas em diferentes lugares do mundo, mas a inteligência que vai movimentar essa reunião não muda, sem ela, seriam bobos engravatados se vendo numa tela, com a inteligência, um problema poderia ser resolvido até mesmo por telégrafo.
Não sou uma crítica negativista da internet, muito pelo contrário, sem ela, não estaria divulgando essas tolas palavras que escrevo. Talvez mandasse xerox em cartas para amigos, como em minha adolescência, quando trocávamos letras de músicas e fotos pelo correio.
O que realmente me preocupa é a falta de consistência dos entusiastas que nem mesmo conhecem a dinâmica das relações humanas que movem a rede e discursam efusivamente sobre a forma como a internet as mudou. Mudou quem, cara pálida? De que adiantaria as dezenas de sms trocados pelos adolescentes que marcam as baladas do fim de semana se o contato analógico que subsidia todo o arsenal digital não fosse o verdadeiro objetivo, como era há 20, 30 ou 40 anos atrás, quando se convidava alguém para o baile por carta.
Tenho visto erros grotescos em pesquisas de tendências e de mercado analisando novos rumos do universo digital, a dinâmica das redes sociais digitais e a influência da internet sobre a vida das pessoas onde a limitação dos métodos de pesquisa e a ignorância por parte dos pesquisadores acerca dos processos culturais e sociais vividos pelos usuários levam ao desenvolvimento de estratégias equivocadas e fracassos no lançamento e posicionamento de produtos. Infelizmente o Brasil entra na seara de novos processos mercadológicos e industriais como a Inovação e Branding pelas portas dos fundos. Ceo´s, diretores de marketing e criadores ainda têm uma grande dificuldade de entender que a ciência aplicada ao mercado não é coisa de nerd, nem papo cabeça, mas a forma mais lógica e atual de criar inovação e evitar a perda de dinheiro. Talvez tenham trauma das disciplinas científicas estudadas na faculdade, ou fiquem acuados por não entender o título de um livro como "Contribuição crítica para a economia política do signo" de Jean Baudrillard, mas aposto que também não entendem como funciona mecânica dos fluidos aplicada à construção civil, mas nem por isso uma construtora vai deixar de contratar um engenheiro para desenvolver uma obra.
Meu ponto como analista da cultura e dos processos comunicacionais é compreender o que antecede a internet para entender como afeta a vida das pessoas, como se justapõe à dinâmica complexa das relações que a subsidiam, como se integra ao processo cultural da vida contemporânea que está além dos mecanismos que usamos para nos comunicar - está no que somos e temos a comunicar.